segunda-feira, 13 de junho de 2011

O sufixo "proibido"

Embora utilizada na literatura e dicionarizada há mais de um século, a lenta e gradual assunção de mulheres a certos cargos profissionais ou políticos tornou a palavra presidenta muito pouco conhecida. A pouca produtividade do sufixo -nta no português, variante do sufixo -nte, pode proporcionar estranheza nas formações de feminino com essa terminação. Não importa: a palavra tem uso comprovado em documentos oficiais e artigos jornalísticos de épocas diversas até hoje e, por mais resistência que exista à sua aceitação, encontra amplo amparo na gramática tradicional. Por que diabos, então, há quem diga que presidenta é errado?

Etimologia

A terminação -nte é um sufixo originário do latim –ns, -ntis, desinência do particípio presente que, na língua portuguesa, resultou em adjetivos ou substantivos deverbais (formados a partir de verbos) com a noção de ‘agente’, como em assaltante, ouvinte, servente.
Por si só, esse particípio presente não vingou na língua portuguesa, tendo se mantido apenas no francês e no italiano. Em O Português Arcaico (2006), a linguista Rosa Mattos e Silva observa que, embora o particípio presente ainda pudesse apresentar remanescentes verbais no período arcaico, apenas se fixou no português contemporâneo “como adjetivo, substantivo ou em outras classes de palavras (presente, constante, tirante, durante etc)” (p. 121).
No artigo Flexão Verbal do Português, O filólogo Joseph Maria Piel esclarece o desaparecimento dessa forma nominal de verbo: “Tendo o gerúndio pouco a pouco assumido, em português, as funções verbais do particípio, não admira a ausência desta última categoria no quadro moderno da conjugação portuguesa.” Como exemplo, o autor cita uma obra em que as formas estante, dizente, dorminte, em sua versão mais antiga em português, mudaram posteriormente, a partir do século XV, para estando, dizendo, dormindo.
O autor também observa que

é natural que a língua não eliminasse simultaneamente todos os particípios em -ante, -ente, -inte [...]. Constituem reminiscências do particípio as formas invariáveis, equivalentes a preposições, salvante, tirante, passante [...]. Abstraindo destes casos, os particípios tornaram-se adjetivos: semelhante, doente, ou substantivos: figurante, tenente, pedinte [...] (p. 220).

Por isso, no português contemporâneo, esse particípio latino ainda é reclamado como fator remoto da (relativa) uniformidade dos adjetivos (e substantivos) terminados em –nte em português. Isso mesmo: relativa. Como veremos a seguir, essa tal uniformidade é ilusória.

A variação de -nte para -nta na história do português

Os estudos da linguista Rosa Virgínia Mattos e Silva (2006) constataram que “no Cancioneiro Medieval Português aparecem sergente: sergenta e o sinônimo servente: serventa (‘servo’); [...] no Orto do Esposodos fins do século XIV, aparecem servente, sergente, mas também sergenta” (p. 103-104).
Para exemplificar as variações da terminação -nte com outras palavras do português arcaico em uso até hoje, podemos citar infanta[1] e parenta, substantivos surgidos no século XIII conforme o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (2010); giganta, publicado num romance de cavalaria em 1522, conforme Barros (1743); posteriormente, num período mais moderno da língua, teremos elefanta, registrado no século XVIII no Diccionario da Lingua Portugueza (SILVA, 1789); presidenta, introduzido no idioma por meio de Antônio Feliciano de Castilho em 1872, conforme a primeira edição do Dicionário Caldas Aulete (1881); e governanta, originado em 1881 por influência do feminino do francês gouvernante (HOUAISS, 2001). Entre os casos que não se consolidaram na língua, Said Ali (1964) cita, em Gramática Histórica da Língua Portuguesa, as palavras comedianta e farsanta, utilizadas na literatura do período quinhentista e seiscentista (p. 62).

O uso

Apesar do registro histórico dos vocábulos supracitados, a variante feminina do sufixo -nte sempre teve baixa produtividade morfológica em nossa língua. De fato, trata-se de um uso irregular, esporádico e imprevisível na formação de palavras.
A baixa frequência da terminação -nta na formação de substantivos femininos é certamente a causa do estranhamento de parte dos usuários da língua ao ler e ouvir essas formas. No caso de presidenta, o contexto histórico e político de tempos passados, que só lenta e gradualmente permitiu a ascensão de mulheres a cargos de direção ou eletivos, não proporcionou muitas oportunidades para o uso do termo. Eis o motivo pelo qual o gramático Celso Cunha constatou, em sua Gramática Moderna (edição de 1970, obra fora de catálogo e anterior à Nova Gramática do Português Contemporâneo, em parceria com Lindley Cintra), que presidenta “se trata de feminino ainda com curso restrito no idioma, pelo menos no Brasil” (p. 96).
De qualquer forma, isso nunca impediu que a palavra presidenta já fosse há muito utilizada, fosse na literatura ou em alguns gêneros textuais, para se referir a mulher que presidisse uma empresa ou um chefiasse um tribunal jurídico, conforme veremos comprovadamente a seguir.
O registro impresso mais antigo da palavra obtido até agora encontra-se na tradução da obra As Sabichonas (Les Femmes Savantes), do dramaturgo francês Molière, por meio do escritor português Antonio Feliciano de Castilho, em 1872: “Mais gratidão lhe devo, immortal presidenta” (p. 128); “À nossa presidenta, e às minhas sócias, peço se dignem perdoar-me o intempestivo excesso” (p. 153); “Nada, nada! Escusa, presidenta, de insistir mais” (p. 230).
O primeiro escritor brasileiro a usar "presidenta" (1881)
Anos depois, no Brasil, Machado de Assis utilizaria o vocábulo em Memórias Póstumas de Brás Cubas (publicada pela primeira vez em 1881): “Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretário, era resolver as cousas de um modo administrativo”.
No âmbito jornalístico, constam incontáveis registros do uso do termo, conforme pode ser constatado por meio das ferramentas de buscas dos sites de jornais. O Correio Braziliense possui, em um de seus registros virtuais, texto com o seguinte trecho: “Já confirmaram presença no vernissage o ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho, e a presidenta do Ibama, Marília Marreco Cerqueira” (1999). Em outra edição, consta: “Ciclo de palestras com a participação da Dra. Ruth Cardoso, presidenta do Conselho do Comunidade Solidária” (1999). Em mais outra edição, temos: “A presidenta do Sindicato dos Comerciários, Geralda Godinho, diz que a categoria é a favor do novo horário” (2002).
Consultando o site de O Estado de S. Paulopodemos encontrar, entre mais de setecentos registros: “Coordenada pela presidenta da Sociedade Brasileira de Arqueologia, Tania Andrade, a mostra permanecerá aberta ao público até o próximo dia 30 de julho.” (2000).
No site da Folha de S. Paulo – jornal que anunciou a utilização exclusiva de presidente[2] para se referir à Dilma Roussef – encontra-se arquivos de edições anteriores com centenas de registros contrariando o tão defendido substantivo de dois gêneros, como este: “[...] Sílvia Passarelli, empresária e presidenta da construtora Passarelli [...]” (1994). Em outra ocorrência, temos: “A presidenta do partido conservador oposicionista CDU (União Democrata-Cristã), Angela Merkel [...]” (2000). É curioso como um jornal faz questão de negar sua própria história, não?
No âmbito do Poder Judiciário, o vocábulo pode ser observado em documentos oficiais. Em Ata de Sessão Solene realizada no Superior Tribunal de Justiça, datada de 1989, consta: “(...) à Desembargadora Maria Tereza Braga, Presidenta do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (...)”. No site do Superior Tribunal de Justiça (STJ), encontram-se vários registros como este:A juíza Sandra de Santis, então presidenta do Tribunal de Júri, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, desclassificou a imputação de crime doloso, passando-a para lesão corporal seguida de morte” (1999).
Não é de se estranhar, portanto, que a linguista Maria Helena de Moura Neves tenha registrado em seu Guia de Usos do Português (2003): “usa-se a forma presidente tanto para homem quanto para mulher. [...] Também é usual, entretanto, a forma regular de feminino, presidenta. >> 'Afinal, era dar ou não dar a renúncia da presidenta da Argentina' (Nos Bastidores da Notícia, de Alexandre Garcia)" (p. 620).
No que se refere ao uso, portanto, comprova-se, em vários meios e épocas, o hábito de se escrever esse feminino, cujas ocorrências tornaram-se mais frequentes na medida em que as mulheres passaram a assumir cargos de presidência.

Normalização gramatical

Em seu Dicionário de Masculinos e Femininos, Aldo Canazio (1960) registra presidenta como feminino de presidente (ao lado de [a] presidente como substantivo de dois gêneros).
Desde sua 1ª edição (1963), a Moderna Gramática Portuguesa de Evanildo Bechara já registrava e abonava essa forma feminina:

Podemos distinguir, na manifestação do feminino, os seguintes processos [...] com a mudança ou acréscimo ao radical, suprimindo a vogal temática [...] Os [terminados] em –e uns há que ficam invariáveis, outros acrescentam –a depois de suprir a vogal temática: alfaiate à alfaiat(e) + a à alfaiata.

Variam:

alfaiate – alfaiata
infante – infanta
governante – governanta
presidente – presidenta
parente – parenta
monge – monja
(p. 84, grifo nosso)

Celso Pedro Luft, em seu Dicionário Gramatical da Língua Portuguesa (1966), ensina que “os substantivos terminados em e são geralmente uniformes (…); há, porém, alguns que trocam o e por a: elefante – elefanta; governante – governanta; infante – infanta;[...] ; parente – parenta; mais raros: [...] giganta; hóspeda; presidenta; alfaiata. Em ABC da Língua Culta, o autor reafirma: “[...] substantivo que se pode tomar como comum de dois gêneros (sexo) para ‘pessoa que preside’: o presidente, a presidente; mas também comporta feminização flexional: a presidenta”.
Rocha Lima (2007), em sua Gramática Normativa da Língua Portuguesa, reconhece: “a força do uso já consagrou as formas flexionadas infanta, parenta e presidenta” (p. 73).
Cegalla (2008) diz o seguinte em seu Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa: “É forma dicionarizada e correta, ao lado de presidente. A presidenta da Nicarágua fez um pronunciamento à Nação. / A presidente das Filipinas pediu o apoio o apoio do povo para o seu governo (p. 336).
Sacconi (2005), em seu Dicionário de Dúvidas, Dificuldades e Curiosidades da Língua Portuguesa, também informa a correção da forma "presidenta".
Finalmente, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (2009), que registra todas as palavras em uso oficial na língua portuguesa,  legitima a palavra (p. 674).
Napoleão Mendes de Almeida parece ser o único gramático de relevância a recusar a forma presidenta. Em seu Dicionário de Questões Vernáculas, sentencia:

São em português uniformes os adjetivos terminados em nte, como já no latim havia uma só terminação – ns – para o masculino e feminino dos adjetivos da segunda classe, por cujo paradigma se declinavam os particípios presentes: prudente, amante, vidente, lente, ouvinte. [...] Alguns dos adjetivos de tal terminação andam a ser flexionados em nta no feminino quando substantivados: parenta, infanta, governanta. Presidenta, porém, ainda está, ao que parece, no âmbito familiar e chega a trazer certo quê de pejorativo (p. 244).

De onde vem essa obsessão napoleônica de quase sempre fazer analogias de questões da língua portuguesa com o seu caso correspondente em latim? Conforme Marcos Bagno (1999) bem observou, “as explicações de Napoleão se baseiam exclusivamente em comparações com o latim e o grego, [...] desconsiderando sistematicamente todas as contribuições da ciência lingüística moderna” (p 80). De fato, a única justificativa dada por Napoleão para condenar a variação do vocábulo presidente é vinculá-la obrigatoriamente à sua uniformidade latina original. Ora, o fato de os adjetivos terminados em -nte serem, “como já no latim”, uniformes em nada justifica ou obriga, necessariamente (como já constatamos), a preservação de tal uniformidade numa língua neolatina.
Vale observar o que diz a Gramática comparativa Houaiss: quatro línguas românicas (2010), ao mostrar o quanto as línguas derivadas do latim comportaram-se de modo peculiar/intrínseco e divergiram em suas formações de gênero:

Há nomes e adjetivos em -a e em -e que podem ser uniformes quanto ao gênero [...] há palavras terminadas em -e que em português, espanhol e italiano são uniformes para o masculino e o feminino, mas que em francês apresentam uma diferença entre a forma masculina e a forma feminina. [...] no que diz respeito aos adjetivos, o italiano permaneceu fiel à terminação e- do latim; o português e o espanhol conservaram-na em palavras como grande ou abandonaram-na em casos como cruel, fácil, cortês e jovem/joven. Estas duas línguas adotaram a desinência -a para formar o feminino de alguns adjetivos que etimologicamente pertenciam ao grupo dos uniformes” (p. 98, grifo nosso).

Mais adiante, no item oportunamente intitulado “O caso particular dos nomes de profissões”, temos:

Numerosas profissões reservadas no passado aos homens são atualmente acessíveis às mulheres. As línguas comportam-se de maneira diferente em relação a esta nova realidade. Tal como o português, o espanhol e o italiano possuem em geral formas no masculino e no feminino para os nomes de profissões: profesor/profesora (espanhol), professore/professoressa (italiano); escritor/escritora (espanhol), scrittore/scrittrice (italiano).
Em italiano, os vocábulos com o sufixo –essa para o feminino de certas profissões ou são antigos, como studentessa, professoressa, ou então foram criados mais recentemente, como deputadessa, avvocatessa (sendo avvocata mais freqüente), ministressa (forma rara). Muitas vezes continua a usar-se a unicamente a forma masculina para homem ou mulher: il deputato, l’avvocato, il ministro.
Em francês, os femininos introduzidos há muito tempo na língua não levantam problemas: boulanger/boulangère, directeur/directrice, vendeur/vendeuse; pelo contrário, há numerosos outros nomes para os quais não existem femininos e que por isso exprimem só a função e não a pessoa: professeur, tailleur, peintre, juge, écrivain, médecin, guide, témoin. Assim, diz-se: Madame Durand, professeur, Madame le professeur (p. 99, grifo nosso).

Como se vê, no que diz respeito à formação de gênero no feminino, cada língua neolatina desenvolveu flexões (ou derivações) distintamente, de acordo com suas respectivas peculiaridades, não seguindo necessariamente a lógica da estrutura vigente no latim. Não há, portanto, por que condenar no português a realização de uma determinada flexão (nesse caso, eu diria derivação) tendo como justificativa uma lógica determinista (nesse caso, a uniformidade dos adjetivos latinos terminados em -nte) que vigorava incondicionalmente FORA do português, numa língua hoje morta.
Voltando ao Napoleão, ao afirmar que “[...] presidenta, porém, ainda está, ao que parece, no âmbito familiar e chega a trazer certo quê de pejorativo”, o autor já não tenta mais se justificar com alguma lógica vinculada à origem latina; apenas emite um mero juízo de valor: “ao que parece”, “está no âmbito familiar” e tem “quê de pejorativo”, afirmações facilmente contestadas ao se observar o uso e o registro do vocábulo em documentos de tribunais de Justiça e artigos de jornais (conforme constatamos anteriormente). O mais estranho é ver o mesmo autor que condena essa variação feminina declarar o seguinte em sua Gramática Metódica da Língua Portuguesa:

A questão do gênero dos substantivos não pára nas normas vistas nos parágrafos anteriores; outros fatos há, particulares, que necessitam ser estudados isoladamente. O uso, fator soberano da consolidação do fator de uma língua e das leis que a regem, consagra certas formas que, embora esquisitas, tornam-se comuns e de emprego cotidiano na boca do povo. É o que se passa, em português, com o gênero de certos substantivos. São fatos que, adstritos a pequeno número de palavras, denominam-se particularidades genéricas (1999, p. 101-102, grifo nosso).

Ora, é no mínimo contraditório que um gramático reconheça tais “particularidades” e, ao mesmo tempo, condene uma dessas mesmas particularidades: Napoleão normaliza, em sua gramática, as formas de feminino parenta, giganta, infanta e elefanta (exceções à regra da “uniformidade” sufixal de -nte da mesmíssima forma que presidenta). Por quê? Até que tentou explicar isso, como vimos acima: “alguns dos adjetivos de tal terminação andam a ser flexionados em nta no feminino quando substantivados”. Ou seja, ele admite exceções à tal uniformidade, mas não aceita o (também substantivado) presidenta como exceção por pura arbitrariedade: “Presidenta, porém, ainda está, ao que parece, no âmbito familiar e chega a trazer certo quê de pejorativo”. Notem a hesitação: “... ainda está, ao que parece...”; reparem a tentativa de explicação vaga, indefinida, imprecisa: “chega a trazer certo quê de pejorativo”. Aqui, fica evidente a total falta de objetividade do gramático.

Não se condena um sufixo apenas por ser pouco frequente na língua

Pesa o fato de a variante sufixal -nta ter baixa produtividade na língua portuguesa, o que pode provocar indisposição entre os que se apegam à aparente regularidade do sufixo -nte. No caso de presidenta, nada se pode fazer contra o uso de uma forma já dicionarizada, oficializada (VOLP) e normalizada gramaticalmente, enterrando de vez o argumento dos que tomam a palavra como errada alegando “não soar bem aos ouvidos”, ter sentido “pejorativo” ou que seja “feia, deselegante”, além de outros pretextos puristas.
Podemos compreender essa indisposição? Sim. Pura falta de costume: a primeira ocorrência da palavra data de mais de um século, mas seu uso esteve, como vimos acima, restrito durante muito tempo ao discurso de algumas áreas profissionais e de determinados gêneros textuais (documentos do Poder Judiciário, textos jornalísticos, obras literárias etc), não tendo alcançado utilização tão ampla quanto agora, momento em que o país tem, pela primeira vez, uma mulher eleita para a presidência da República. E se, conforme bem observou Luft no já citado ABC da Língua Culta, “já houve época em que puristas não toleravam o substantivo feminino parenta” (p. 333), estou certo, meus amigos, de que no futuro algum autor comentará a mesmííííssima coisa sobre presidenta.


[1] “Não estariam, entretanto, grandemente convencidos os quinhentistas da correção desta linguagem se já hesitavam entre infante e infantacomo facilmente se vê na Crônica de D. Manuel por Damião de Góis. A forma infantatornou-se, contudo, a preferida por [Padre Antônio] Vieira e outros, e prevaleceu” (SAID ALI, 1964, p.62).
[2] Pasquale Cipro Neto afirmou, na edição de 02/01/2011 desse jornal,  que “o uso da forma ‘presidenta’ causa estranheza aos leitores”. No entanto, em seu CD-ROM Pasquale Explica, afirma: “Existe feminino de presidente? Existe, e não existe. Quem manda é o cliente: pode-se dizer ‘a presidente’ ou ‘a presidenta’; é indiferente”.

domingo, 5 de junho de 2011

Entre a norma e o uso: a dupla pronúncia da palavra "algoz"


Na língua portuguesa, seja entre os falantes do Brasil, seja entre os de outros países lusófonos, é pouco frequente a pronúncia de "algoz" com o timbre fechado /ô/. Curiosamente, é essa a única pronúncia prevista pela gramática normativa, que não reconhece o uso com o timbre aberto /ó/, utilizado pela maioria maciça dos falantes. Por que isso ocorre? Uma coisa é certa: nada na língua acontece por acaso. Se hoje usamos uma pronúncia distinta daquela que foi sempre prescrita, tentemos descobrir o porquê...

Etimologia

Classificado como arabismo, o vocábulo algoz tem um étimo que, na verdade, não se origina na língua árabe. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa diz que gozz era "o nome de uma tribo turca cujos indivíduos serviam de carrascos no império dos Almóadas" (p. 26). Esse designativo turco tomou a forma al-gozz (unindo-se ao artigo al-) em árabe, idioma por meio do qual o vocábulo ingressou na língua portuguesa no século XIV, com o sentido literal de "carrasco, executor da pena de morte ou de outras penas corporais” e com o sentido figurado de "indivíduo cruel, de maus instintos; atormentador, assassino" conforme Houaiss. O mais remoto registro conhecido da palavra em textos portugueses parece encontrar-se na mais antiga versão dos Quatro Livros dos Diálogos de São Gregório, mas o filólogo José Pedro Machado indica a primeira ocorrência em Crônica de D. Pedro I, de Fernão Lopes (séc. XIV).

Primódios: a distinção entre os timbres intermediários

No árabe, língua em que se originou a palavra, não havia determinação para o uso da pronúncia aberta ou fechada da vogal o. De acordo com o linguista Aldo Bizzocchi, "[...] até hoje muitas línguas [...] não fazem distinção entre os timbres aberto e fechado do e e do o. Em outras, como o árabe, esses timbres intermediários são meras variantes sem valor fonológico das três vogais primárias".
Entretanto, no português arcaico, já havia a distinção entre os timbres aberto e fechado do o. A linguista Rosa Virgínia Mattos e Silva, em O Português Arcaico, observa que o gramático Fernão de Oliveira, no século XVI, realizava essa diferenciação por meio da descrição fonética dos pares mínimos formosos < ω > e formoso < o >. Mas é possível saber qual(is) a(s) pronúncia(s) usada(s) (ou a mais usual) de algoz por ocasião de seu surgimento no português? Eis nossa primeira dificuldade: os registros iniciais encontrados dessa palavra não acentuavam o o com o sinal diacrítico cincunflexo (^). Embora existentes desde 200 a.C., os sinais de acento só foram adotados no português tardiamente, entrando em pleno uso no século XVII. Antenor Nascentes, no artigo "Origem das Notações Léxicas e das Sintáticas", publicado em Estudos Filológicos (1967), diz que "os acentos não aparecem ainda nas primeiras gramáticas portuguesas, como as de João de Barros (1540) e Fernão de Oliveira (1536). O timbre aberto era dado pela duplicação das vogais a, e e o" (pp. 33-36).
Seguindo esse raciocínio, se "o timbre aberto era dado pela duplicação das vogais" e se os registros arcaicos possuem sempre a grafia algozisto é, com um único "o", deduz-se então que a pronúncia da palavra nessa época era fechada (ô).

Séculos a XVIII a XIX: a normalização em Portugal

A hipótese da pronúncia original com timbre fechado encontra reforço nas obras de referência que surgem posteriormente: desde 1712, temos, por meio do Vocabulario Portuguez e Latinode Raphael Bluteau, o primeiro registro conhecido indicando-se a pronúcia (algôz); numa espécie de "VOLP" da época, intitulado Orthographia, ou a arte de escrever, e pronunciar com acerto a língua portuguesa (1734), o ortografista João de Moraes Madureyra Feijó sentencia: "algôz, e algôzes, com semi-tom no o" (p. 179); o franciscano Bernardo de Lima e Mello Bacellar (1783) também registra, em sua obraa palavra com acento circunflexo.
Verbete no Vocabulario Portuguez e Latino (1712)
Em algumas obras de referência dos séculos XIX e XX, identifica-se a ocorrência do termo grafado com acento circunflexo (algôz) e, em outros casos, sem o acento, mas com a devida indicação da pronúncia fechada do timbre, conservando a ortoépia com o fechado (/ô/). Domingos de Azevedo, em sua Grammatica Nacional (1880), não acentua o vocábulo com o sinal diacrítico, mas descreve logo a seguir sua pronúncia: "ál-gôz" (p. 196). A mesma forma ortoépica é seguida em Camões – Um estudo histórico (1906), de António Feliciano de Castilho, que, no entanto, acentua a letra o (p. 78).

Séculos XX e XXI: a gramática normativa no Brasil

O acento circunflexo na palavra desapareceu misteriosamente, mas a tradição se manteve. Napoleão Mendes de Almeida, em seu Dicionário de Questões Vernáculasafirma somente o seguinte no verbete algoz: “no singular e no plural com o fechado” (p. 18). Na Moderna Gramática Portuguesa, Evanildo Bechara segue o mesmo pensamento: "tem timbre fechado o o tônico de: aboio, alforje, algoz [...]" (p. 78). E na Gramática Normativa da Língua PortuguesaRocha Lima (2007) cita "algoz" como o primeiro exemplo das palavras que "apresentam /o/ fechado" (p. 36).
No Dicionário de Dificuldades da Língua PortuguesaCegalla também indica a pronúncia com ô como sendo a única correta, mas não sem comentar e tentar explicar a causa do incorreto uso com o timbre aberto (ó): "é fechado o timbre da vogal o: algoz (ô), algozes (ô). Embora predominante, é incorreta a pronúncia algóz, algózes, com o aberto. Essa prosódia viciosa se deve talvez à influência de outras palavras terminadas em -oz, com o aberto, que são a maioria (cf. atroz, veloz, albatroz, feroz, voz, etc)" (p.36).
Luft, em seu ABC da Língua Culta, também defende exclusivamente o timbre fechado, e por sua vez observa que "a tendência para o o aberto é apenas um fato de regularização (compare com voz, albatroz, foz, noz, etc.)". Na mesma obra, o autor explica que regularização é a "tendência, na linguagem infantil e popular, (isto é, linguagem não policiada), de estender as regras gerais a formas que obedecem a regra especiais, formas ditas 'irregulares'..." (p. 404).Tais citações comprovam, praticamente, a unanimidade sobre a questão entre os autores da gramática normativa.
Porém, quanto à acentuação, nenhum dos autores supracitados, cujas obras foram publicadas em meados do século XX, indicam a escrita da palavra com acento; e é estranho verificar que Cândido de Oliveira, em seu Dicionário Gramatical (edição única de 1967), prescreva algoz sem acento ("pronunciar com 'ô' fechado"), ao mesmo tempo em que diga que "o plural é algôzes, acentuado".
Popular comentarista de questões relativas à normalização gramatical em vigor no Brasil, Pasquale Cipro Neto, no CD-ROM Pasquale Explica, admite a existência da pronúncia com o aberto, mas não o endossa, ratificando apenas aquilo que é previsto pela gramática normativa: "Você conhece alguém que pronuncie algoz (ô)? Eu não conheço, mas é essa a pronúncia recomendada nos dicionários e nas gramáticas. A palavra algoz aparece assim, com esse 'o' fechado. (...) Duro é ter coragem de dizer 'algoz' (ô); a tendência do uso efetivo da língua é que esse 'o' seja aberto, algoz (ó). (...) Os dicionários insistem em recomendar a pronúncia fechada, algoz (ô)." Suas afirmações fazem sentido, exceto no que diz respeito aos dicionários (como veremos a seguir).
Dentre os gramáticos, Sacconi talvez seja o único a ter mudado de ideia: em seu Dicionário de Pronúncia Correta (1991), afirma: "ALGOZ, algôz. [...] O plural, algozes, também tem a vogal tônica fechada, ainda que campeie na língua a pronúncia algóz, sem dúvida, influência de feroz" (p. 11). No entanto, a última edição de seu dicionário, lançada em 2010, registra a dupla pronúncia. O motivo? Descobriremos mais adiante.

Século XXI: a dicionarização de algoz com o timbre aberto

O dicionário Caldas Aulete, em sua versão on-line disponível gratuitamente, na contramão das demais gramáticas e outras obras lexicográficas, registra apenas "(al.goz) [ó]", com o timbre aberto, embora, em edições impressas anteriores, apresentasse apenas a pronúncia com o fechado. Além desse dicionário, outras publicações lexicográficas de Portugal também indicam apenas o timbre /ó/: é o caso do Dicionário da Academia de Ciências de Lisboa (com uma única edição lançada em 2001), que traz, no verbete algoz, a transcrição fonética descrevendo a pronúncia com o aberto. Priberam, um dicionário exclusivamente eletrônico concebido em Portugal, registra a dupla pronúncia.
Tal mudança de registro, nesses casos, pode ter como causa o reconhecimento do predomínio da pronúncia realizada, na prática, pela maioria dos falantes (tanto no Brasil quanto em Portugal), hipótese que encontra amparo nas observações da linguista Maria Helena de Moura Neves a esse respeito. Representante da abordagem funcionalista no campo da Linguística, a autora afirma que "o uso pode contrariar as prescrições que a tradição vem repetindo, e o falante [...] terá de conhecer os dois lados da questão: o modo como os manuais normativos dizem que 'deve ser' ou 'não deve ser' e o modo como, realmente, 'é'...". Assim sendo, em Guia de uso do português (2003) a autora observa, no verbete algozque "a pronúncia recomendada em obras normativas é com O fechado, mas prevalece a pronúncia com O aberto, aparentemente por analogia com as demais palavras terminadas em –oz, como albatroz, feroz, veloz" (p. 57).
Na última edição lançada do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2009), registra-se o verbete algoz com dupla pronúncia: "Algoz - Ortoépia: ó ou ô". É, provavelmente, o primeiro dicionário a reconhecer e registrar essa duplicidade (Sacconi e Priberam também procederam dessa forma um ano depois). O que se observa, na verdade, é a gradual dicionarização da dupla prosódia da palavra, anos após sua oficialização pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp). Da 1a. (1981) até a 3a. edição (1999), o Volp registrava apenas a forma com o timbre fechado. Finalmente, em sua 4a. edição (2004), passa a constar a dupla pronúncia: "algoz (ó ou ô) s.m.; pl. (ó ou ô)". Talvez resida aqui a razão pela qual Sacconi tenha admitido, posteriormente, a dupla pronúncia: no prefácio da última edição de seu dicionário (2010), lê-se que "apesar de este autor muitas vezes discordar de certas grafias oficiais [...], nesta obra a escrita se apresenta rigorosamente de acordo com a ortografia prescrita pela Academia Brasileira de Letras no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp)".

Lacuna na ortografia: causa da oscilação da pronúncia?

O que quer que tenha provocado a indesejável – para a gramática normativa – oscilação de pronúncia entre os timbres aberto e fechado do o em algoz, seria importante avaliar, nesse caso, o quanto a ausência de um sinal diacrítico (^) pôde ter contribuído para a oscilação de pronúncia do vocábulo.
Embora a ortografia do português possua bases de ordem fonológica, ela representa a pronúncia com alguma aproximação, ou seja, essa representação não é exata. Não se atingiu, pelo menos até o momento (e é provável que nunca se atinja), a exata correspondência entre fonema e grafema desejada pelos falantes. O linguista Mário Perini, em sua Gramática do Português Brasileiro,  diz que "só em poucos casos um falante pode ter dúvidas quanto à pronúncia de uma palavra [...]: a) na pronúncia de e e o tônicos, quando não são marcados por acento nem são parte de um ditongo. Assim, temos pera, com [e], e fera, com [ε]; sopa, com [o] e tropa, com [O]; nesses casos a ortografia não fornece pistas para a distinção [...]. Esses são os casos em que a ortografia não dá indicações suficientes para a pronúncia. É bom notar, aliás, que em geral essas flutuações não denunciam inconsistência da fala, mas antes inadequações da ortografia" (p. 340, grifo nosso).
Eis um ponto crucial para tentarmos compreender o que pode ter provocado, a contragosto dos gramáticos tradicionais, a consagração do timbre não recomendado: a ausência de uma acentuação que marcasse, na língua escrita, a pronúncia desejada para a língua falada, tal como chegou a ser registrada no século XIX e início do século XX. A questão é: quando e por que o acento circunflexo em algoz deixou de ser aplicado?
O que se sabe é que, em 1971, a ortografia em vigor sofreu alteração no que dizia respeito aos acentos diferenciais, especialmente os circunflexos. Em Considerações sobre a fala e a escrita, a linguista Darcília Simões explica que "onde havia oposição de timbre aberto/fechado e o som fechado era marcado pela grafia do circunflexo, este desapareceu, ou seja, deixou de aparecer na escrita. Ex.: zebra (s.) /ê/ & cf. zebra (f. v.) /é/ passou a ser escrito sem qualquer marca gráfica diferenciadora. Anteriormente, o nome do animal (forma substantiva), pronunciado com timbre fechado /ê/, era grafado com circunflexo. [...]"(p. 41). Porém, não é esse o caso de algoz, em que não há uma oposição de timbre entre duas palavras homógrafas, mas apenas a necessidade de indicação da pronúncia. O abandono do acento na palavra se deu, como já constatamos, bem antes desse acordo ortográfico.
Independentemente da causa da supressão da acentuação, o fato é que, sem o acento, a oscilação da pronúncia entre os timbres aberto e fechado pôde facilmente se estabelecer. Convenhamos: se, ao ler a palavra algoz, a maioria dos falantes tende a usar o timbre aberto (ó), a alegação de "pronúncia viciosa" (Cegalla) só faz sentido em relação a uma regra gramatical datada que, na ausência de um acento indicador de timbre (^), não consegue se manter diante da inevitável "regularização" (usando o termo de Luft) de algoz com atroz, albatroz, veloz, feroz, voz, foz, noz, a meu ver, mais do que justificada, nesse caso.

E as gramáticas?

Por não ter sido ainda encontrada uma solução para as várias lacunas da ortografia do português, questões como a oscilação de pronúncia poderão constituir sempre um obstáculo para a consolidação de critérios normativos gramaticais. De qualquer forma, a recente dicionarização da pronúncia do vocábulo algoz com o timbre aberto (/ó/), admitindo-o com dupla prosódia, demonstra o reconhecimento, por parte das equipes lexicógraficas do Volp e de alguns dicionários, de um uso prosódico consolidado pela maioria dos falantes de português, em detrimento daquilo que, até então, era prescrito pela gramática normativa.
É sabido que os chamados dicionários gerais da língua (Houaiss, Aurélio, Caldas Aulete, Michaelis etc) não possuem função realmente normativa – papel que cabe com mais precisão às gramáticas. No entanto, o Volp, na condição de registro oficial das palavras do português brasileiro, legalizou a dupla pronúncia. Resta saber quando (ou se) as gramáticas abonarão também o uso que algumas obras de referência já reconheceram.