quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O vacilante gênero da/do personagem


Ilustração para “Um escândalo na Boêmia” (1891),
de Conan Doyle: Sherlock Holmes, disfarçado,
diante da porta de sua casa, ouve o cumprimento
de boa-noite de alguém que acredita ser um
personagem que, na verdade, era uma personagem.
Há quem ache que personagem seja um substantivo exclusivamente feminino. Outros têm total convicção sobre o gênero unicamente masculino da palavra. Sim, estamos diante de mais uma discórdia gramatical. Analisemos a biografia da palavra em nossa língua para entender o que levou a existir, até hoje, divergência sobre o seu gênero entre os usuários do português.

Foi do francês e do provençal que herdamos inúmeros substantivos terminados em -agem (oriundo do latim -aticu), todos originalmente masculinos, mas que se tornaram femininos posteriormente1, por influência do modelo de outro sufixo -agem2, este de ascendência diretamente latina (-ago, -aginis), com as noções de 'estado, situação', 'ação', ou 'resultado da ação': imagem, voragem etc.).

Assim, em várias épocas a partir do século XIV, o francês (-age) e o provençal (-atge, -aitge) emprestaram diversas palavras para o português com este sufixo: bagage, charriagecouragelenguatje, message /messatgeomenatgeospedajepaysagepassage, sabotage, salvatge, avantageviatge etc; paralelamente, outras se formaram com o outro sufixo homônimo, mas derivadas de verbos e substantivos já existentes no próprio português: capotagem, carceragem, friagem, garimpagem, estiagem etc. 3

Na língua em que se originou (séc. XIII), a palavra personagem é masculina (le personnage), assim como as demais compostas com o sufixo -age. Mas tal herança de gênero não resultou na fixação de uma forma igualmente masculina para essas palavras em nossa língua. Primeiramente, devemos atentar que, durante a era do português arcaico (1214–1536), os chamados substantivos de gênero único oscilavam entre o masculino e o feminino. A linguista Rosa Virgínia Mattos e Silva observa que “há nomes que eram masculinos: o linguagem, o linhagem; mas já na versão galego-portuguesa do Foro Real de Afonso X, fins do século XIII ou começos do XIV, a par de o linhagem ocorre a carceragem (2006, p. 103). Mais adiante, a autora explica o motivo:

Essa variação de gênero, em nomes de gênero único, no período arcaico e na diacronia, isto é, confrontando o português arcaico com o moderno, está documentada, em geral, em nomes que eram ou neutros no latim, ou em nomes abstratos ou em nomes de origem grega terminados em -a. Relembre-se que tanto no latim como no português o gênero não é motivado externamente; apenas em um subgrupo do léxico está relacionado ao sexo dos entes que nomeia. Sendo assim, e a isso acrescido o fato de os neutros do latim terem se distribuído pelo masculino e feminino, é compreensível a oscilação entre os nomes de gênero único em um momento em que ainda não se tinham iniciado as tentativas de normativizar a língua, o que só começará na quarta década do século XVI (2006, p. 103, grifo nosso).

Assim, em meio ao caótico processo de normalização gramatical, na ocasião em que ingressou na língua portuguesa (séc. XVI), a palavra já apresentava, desde então, gênero vacilante, sendo usada ora no masculino, ora no feminino.

Comedia Ulysippo, de Jorge Ferreira de Vasconcelos (1560):
 o primeiro registro conhecido da palavra "personagem"
Tal condição se manteve por séculos. O Diccionario da Lingua Portugueza (1789), de Antônio Moraes Silva, registrava o duplo gênero no verbete da palavra, além de abonar o uso masculino com um exemplo literário e atestar o caráter mais usual deste gênero:

PERSONAGEM, s. m. e f. pessoa de consideração, nobre, autorizada por seu grande officio, ou qualidade. Vieira, e Lobo, visitou da parte de hum personagem. Os exemplos do género masculino sáo mais ordinários (SILVA, 1789, p. 193, grifo nosso).

Quase um século depois é que começa a ser identificada uma tentativa de correção linguística. O Diccionario contemporaneo da lingua portugueza (1881), de Caldas Aulete, que também registrou esse substantivo com os dois gêneros, fazia o seguinte alerta no verbete da palavra: "no masculino, é termo condenado pelos puristas como galicismo".

Apesar de certos autores da normalização gramatical terem, a princípio, decidido a favor do gênero feminino, durante o século XX, pelo menos por estas bandas, a preferência pelo masculino tornou a prevalecer: “No Brasil, tem predominado porventura o masculino, mesmo tratando-se de mulher (JUCÁ FILHO, 1953, p. 30). Celso Luft chegou a observar que o uso exclusivo do gênero masculino  conta com a maioria do uso no ensaísmo e na crítica literária” (2010, p. 346).

Mas a tradição sempre falou mais alto no coração dos mais conservadores. Não é de se estranhar, portanto, que eles só admitam o gênero feminino para a palavra:

Constitui francesismo o emprego de personagem com gênero masculino. Acaso, referindo-se a Pedro, pode o leitor dizer “esse pessoa”? Se Pedro é “uma pessoa”, ele também é “uma personagem”. Personagem não é comum de dois; tem gênero fixo, feminino: essa personagem, uma personagem, as personagens (ALMEIDA, 1981, p. 232).

Não desmereço de todo as razões que Napoleão usa para justificar seu critério de correção; como veremos adiante, Celso Luft — em geral menos conservador do que Napoleão — sugere que,  no sentido de pessoa, de personalidade, é "preferível" o gênero feminino (embora não condene o uso do masculino nos demais casos). Mas o problema do Napoleão muitos de nós já sabemos: falta de tolerância, de transigência e de compreensão com os usos que, de uma forma ou de outra, já se consolidaram e se legitimaram na escrita culta do português independentemente do crivo da tradição ou do prévio abono das chamadas autoridades linguísticas” (filólogos, cânones, escritores clássicos).

Sacconi diagnostica o mesmo "mal" perseguido por Napoleão (galicismo), só que viaja ainda mais na maion... quer dizer, na analogia:

É nome sobrecomum e sempre feminino (a personagem, uma personagem): Lima Duarte fez uma personagem engraçada naquela telenovela. Muitos, no entanto, uso “o” personagem, “um” personagem”, copiando o gênero da língua francesa, de onde vem a palavra (personage). Em português, todavia, toda palavra terminada em -gem é feminina, com exceção de selvagem, que é substantivo comum de dois [...]. Àqueles que usam “o personagem” convém perguntar por que também não usam “o vernissagem” que é também palavra francesa. Ou “o garagem”, que também é palavra francesa (2005, p. 289).

Aqui, notamos como o ideal de homogeneização e a busca pela rigorosa fixação em detrimento de um uso legitimado na língua escrita não permitem que o gramático admita a mínima possibilidade de outra(s) exceção(ões) consagradas, embora reconheça a condição de comum de dois gêneros para “selvagem”. Já a piadinha sem graça feita ao final da citação carece de fundamento, pois ninguém escreveria/falaria desta ou daquela forma (o garagem”, o vernissagem”) a seu bel-prazer ou necessariamente em razão de alguma lógica rígida, de alguma analogia, mas sim em razão de algum uso que se consagrasse socialmente e, depois, talvez até dentro da própria linguagem padrão: ora, se uma variante como “o garagem” se firmasse na língua, isso ocorreria sem qualquer conflito com as formas análogas empregadas exclusivamente com gênero feminino! Décadas antes de Sacconi, o filólogo Sousa e Silva já respondia a gramáticos com essa atitude: “a condenação do masculino é mero arbítrio, não se apóia nos fatos de linguagem” (1958, p. 210).

A turma de gramáticos com posição mais moderada em relação à questão é — graças a Deus — bem maior. Em um subitem de sua gramática intitulado “Gêneros que podem oferecer dúvida”, Evanildo Bechara diz que “são femininos: [...] os nomes terminados em -gem (exceção de personagem, que pode ser masculino ou feminino)”. Mais adiante, reafirma: "São indiferentemente masculinos ou femininos: [...] personagem, sentinela, soprano [...]4 . Celso Cunha (2001, p. 196) sentencia: “Diz-se, indiferentemente, o personagem ou a personagem com referência ao protagonista homem ou mulher”. Rocha Lima (2007, p. 75) também trata o vocábulo como “substantivo de duplo gênero ou de gênero vacilante”.

Domingos Paschoal Cegalla admite que, apesar de quase todas as palavras terminadas em -agem serem do gênero feminino, personagem constitui uma exceção, pois a palavra é hoje usada tanto no feminino como no masculino; entretanto,  adverte que com referência a mulheres deve-se usar o feminino (2009, p. 307).

Entre os gramáticos, é Celso Luft quem realmente disseca a questão e observa mais cautelosamente cada um de seus desdobramentos:

Atualmente existem três possibilidades para personagem, levando em conta o gênero gramatical e o gênero biológico (sexo):

1ª) só masculino (“gramatical”): os personagens (homens e mulheres) de Machado, o personagem Bentinho, o personagem Capitu;

2ª) só feminino (“gramatical”): as personagens de Machado, a personagem Capitu;

3ª) masculino/feminino — a) masculino para ambos os sexos, abrangentemente (= sem acepção de sexo), e para ‘homem’: os personagens de Machado (Bentinho e Capitu), o personagem Bentinho; b) feminino (gênero-sexo, gênero “biológico”: silepse de gênero) para mulher, personagem mulher: a personagem Capitu.

Esta 3ª solução tem o antecedente de selvagem, também do francês antigo (os selvagens de Alencar, o selvagem (‘índio’) Peri/a selvagem (‘índia’) Iracema), por isso tem a minha preferência.

A 2ª solução tem o antecedente de todos os demais –agem. A 1ª solução, essa só tem antecedente alienígena: o francês — mas conta com a maioria do uso no ensaísmo e na crítica literária, segundo me parece. Na acepção ‘pessoa, personalidade’, o gênero desta palavra (feminino) sugere-se como o preferível para personagem (LUFT, 2010, p. 345-346).

Aqui, percebemos uma distinção e um cuidado não observados nas prescrições dos demais gramáticos mais moderados (com exceção de Cegalla): embora usemos “o personagem John Watson, não nos parece adequado dizer igualmente o personagem Irene Adler, mas sim  dar a César o que é de César e dizer a personagem Irene Adler. A inadequação, portanto, consistiria apenas em usar o gênero masculino diante de nome de mulher.

Saindo da gramaticografia para a lexicografia: os principais e mais conhecidos dicionários da língua portuguesa (Houaiss, Aurélio, Aulete etc.) descrevem personagem como palavra que pode ser usada tanto no gênero masculino quanto no feminino. E, para encerrar de vez a questão, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa registra personagem como substantivo de dois gêneros. Napoleão e Sacconi, you lost.




Referências5


ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Dicionário de Questões Vernáculas. São Paulo: Caminho Suave, 1981.

BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2009.

CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2009.


CUNHA, Antonio Geraldo. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Lexikon, 2010.


JUCÁ FILHO, Cândido. Curso de Português: 2º ano colegial. São Paulo: Companhia Editora, 1954.

LUFT, Celso. ABC da Língua Culta. Rio de Janeiro: Globo, 2010.

SACCONI, Luiz Antonio. Dicionário de Dúvidas, Dificuldades e Curiosidades da Língua Portuguesa. São Paulo: Harbra, 2005.

SILVA, A. M. de Sousa e. Dificuldades Sintáticas e Flexionais. São Paulo: Organizações Simões, 1958.

SILVA, Antônio de Moraes. Diccionario da Lingua Portugueza. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.

SILVA, Rosa Virgínia Mattos e. O Português Arcaico: Fonologia, Morfologia e Sintaxe. São Paulo: Contexto, 2006.

VASCONCELOS, Jorge Ferreira. Comedia Ulysippo. Lisboa: officina de Pedro Craesbeeck, 1618.

____________________________________________

1 "Apesar do castelhano e do francês terem preferido o masculino" (JUCÁ FILHO, 1954, p. 30).
2 Curiosamente, embora de origens distintas, estes dois sufixos nominais homônimos apresentam funções idênticas ou muito semelhantes (CUNHA, 2010, p. 18).
3 Posteriormente, tal afixo tornou-se muito produtivo inclusive na linguagem coloquial e popular (molecagem, malandragem, sacanagem, fuleiragem).
4 Em textos deste gramático, nota-se sua preferência pelo gênero masculino (o personagem).
5 Neste post, optei por publicar as referências em vez de indicar cada obra por meio de links (o que, desta vez, me pareceu um pouco cansativo).

domingo, 2 de setembro de 2012

E a gramática que se exploda!


— Daqui vocês não me tiram — respondeu-lhes a bomba. — O primeiro que me tocar, eu explodo. Talvez este tempo de verbo não exista, mas pouco estou ligando à gramática de vocês. À gramática e ao resto. Estou farta! Farta! (trecho de A Fugitiva, crônica de Carlos Drummond de Andrade)




Conjugação verbal às vezes é um inferno. Dependendo do verbo em questão, pode-se ficar em dúvida sobre tempos e pessoas verbais nos quais ele pode ser conjugado. O problema se torna maior quando existem divergências entre o que já é usual na língua e o que é normatizado.

Vejamos o caso do verbo 'explodir': tradicionalmente, é considerado defectivo, isto é, um verbo que não apresenta todas as formas do paradigma a que pertence (como abolir, adequar, banir, demolir, doer, falir, reaver, colorir, ruir, exaurir, extorquir etc). Entretanto, quem consulta as obras lexicográficas mais conhecidas do português brasileiro pode assimilar  outro entendimento.



Comecemos pelo Houaiss. Em sua versão eletrônica, ele informa que explodir é regular e apresenta a sua conjugação em TODOS os tempos e pessoas verbais:

Ferramenta de conjugação de verbos da versão eletrônica do Dicionário Houaiss (2009)


Conjugação do verbo

explodir na versão

eletrônica do dicionário

Aurélio (2009)
No verbete explodir, entretanto, consta a seguinte nota: "Geralmente considerado defectivo, não teria as formas em que ao 'd' da raiz se segue 'a' ou 'o' (1ª pessoa do singular do presente do indicativo, todo o presente do subjuntivo, imperativo afirmativo, com exceção da 2ª pessoa do plural, e o imperativo negativo)". Além disso, informa o seguinte, dentro da própria janela da ferramenta que conjuga o verbo: "[...] tem sido usado com conjugação completa, ocorrendo também a forma 'expludo' para a 1ª pessoa do singular e, portanto, para o presente do subjuntivo" (grifo nosso)¹.


O 'rival' Aurélio faz quase a mesma coisa em sua versão eletrônica, conjugando explodir em todos os tempos e pessoas (conforme imagem ao lado). Entretanto, contrariamente ao que apresenta, afirma que tal verbo é "defectivo, não conjugável na 1ª pessoa do singular do presente do indicativo, nem, portanto, no presente do subjuntivo". Se considerarmos apenas esta nota e não as conjugações exibidas, notamos uma divergência em relação ao Houaiss (que afirma que a tal defectividade se estenderia aos imperativos afirmativo e negativo).


Em sua versão eletrônica (não a versão on-line), o Aulete não conjuga o verbo na 1ª pessoa do presente do indicativo e em nenhuma pessoa do presente do subjuntivo, mas informa que "na língua corrente, tanto falada quanto escrita, já é comum o emprego da 1ª pessoa singular do presente do indicativo explodo [ô], e das formas do presente do subjuntivo exploda [ô], explodas [ô] etc" (grifo nosso).



No âmbito lexicográfico², percebemos que os dicionários reconhecem (e registram) esses usos. Do ponto de vista normativo, porém, a coisa muda de figura: de acordo com Napoleão Mendes de Almeida,

certos verbos da terceira conjugação, como polir, colorir e outros, só se conjugam nas formas em cuja desinência existe i. Nas formas em que o paradigma partir não tiver i (o que se dá nas três pessoas do singular e na 3ª pessoa do presente do indicativo, no singular do imperativo e no presente do subjuntivo), tais verbos não poderão ser conjugados (ALMEIDA, 1981, p. 6).

O autor observa ainda que, desses verbos, há alguns que "toleram as flexões e e em: bane, brande, explode, carpe, discerne, explode, freme, gane, haure, late, mune". Apesar disso, o gramático oferece uma alternativa para a defectividade, informando que

quando necessário, recorre-se, para preencher as falhas de conjugação, ou a um verbo sinônimo ou ao auxílio de outro verbo que, sem prejuízo para a significação, proporciona a flexão em i: estou polindo, sei colorir, não vou extorquir, não podes abolir, ele se põe a vagir (ALMEIDA, 1981, p. 6).



Domingos Paschoal Cegalla pensa de modo semelhante: "[o verbo explodir] só tem as formas em que ao d se seguem e ou i: explode, explodiu, etc". Para as formas não existentes, ou melhor, não previstas pela gramática normativa, dá alternativa diferente de Napoleão: "suprem-se as formas defectivas com o verbo estourar". Entretanto, reconhece que "escritores modernos têm usado as formas explodo, exploda" (CEGALLA, 2009, p. 167).

Celso Pedro Luft apresenta a mesma restrição:

não se emprega na 1ª pessoa do singular do presente do indicativo e em todo o presente do indicativo, embora haja quem defenda essas formas (expludo, expluda[s], expludamos, expludam, explode[s], explodimos, explodem, explodia,...; explodi,...; etc) (LUFT, 2010, p. 161, grifo nosso).

Luiz Antonio Sacconi, em seu Dicionário de Dúvidas, Dificuldades e Curiosidades da Língua Portuguesa, também condena a conjugação do verbo na 1ª pessoa do presente do indicativo e em todo o presente do subjuntivo – embora admita as formas expludo, expluda – e, tal como Cegalla, sugere como alternativa o uso do verbo estourar:

Embora a gramática tradicional estabeleça essa regra, a língua cotidiana tem consagrado este verbo na sua conjugação completa, usando expludo como a primeira pessoa do singular do presente do indicativo, tendo cobrir por paradigma. São, portanto, equivocadas a forma "explodo" e as supostas derivações "exploda", "explodas", etc. Assim, podemos até admitir: Quero que ela expluda. Mas não: Quero que ela "exploda". Eu expludo de raiva, quando isso acontece. E não: Eu "explodo" de raiva, quando isso acontece. O melhor mesmo, todavia, é substituir as formas deste verbo, condenadas pela gramática, pelas correspondentes de estourar (SACCONI, 2005, p. 192).

As citações dos gramáticos acima já devem ser suficientes para identificarmos certo consenso normalizador em torno da condição defectiva do verbo explodir. Todavia, elas se mostram notavelmente conflitantes com o que se vê, na prática, no âmbito da linguagem culta. Isso nos leva a questionar: qual é a lógica da defectividade de um verbo? Ora, ela não é necessariamente inerente à própria natureza verbal original, mas deve se desenvolver de acordo com um uso que, consolidado, abranja ou não todas as pessoas e tempos possíveis. Poderiam esses usos verbais se estabilizarem de tal forma num dado momento histórico da linguagem culta a ponto de impedir que o verbo, originalmente defectivo, evoluísse para outra condição? O que de fato faz o verbo explodir continuar a ser defectivo? A norma ou o uso?  Em seu Breviário da Conjugação de Verbos da Língua Portuguesa, Otelo Reis declara que

foi o uso que não consagrou certas formas, as quais, nunca tendo sido vistas ou ouvidas, são espontaneamente evitadas pelos que procuram falar corretamente. Em outros, é a eufonia que faz omitir algumas desagradáveis ao ouvido, ou geradoras de equívocos. Em outros, ainda, a defectibilidade resulta de ser impossível conceber-se, aplicada a certas pessoas, ou em certos tempos, a ideia expressa pelo verbo (REIS, 1971, p. 13-14).

Podemos concordar pelo menos em parte com esta citação. Existem, é claro, casos em que a defectividade depende da natureza peculiar do verbo. Cada caso é um caso. O que não podemos admitir é que, em relação a determinados verbos (como explodir), essa consagração fique reservada exclusivamente ao passado da língua: ao entendermos que "foi o uso que não consagrou certas formas", devemos levar tal lógica adiante e também admitir que é o uso que continua, ainda hoje, a consagrar ou não certas formas, e que continuará a fazê-lo no futuro.

Assim, se Sacconi diz que "a língua cotidiana tem consagrado este verbo na sua conjugação completa", se Cegalla reconhece que "escritores modernos têm usado as formas explodoexploda" e se Luft admite haver "quem defenda essas formas", se os dicionaristas registram esses usos, não vemos por que realmente manter a condenação no âmbito da prescrição gramatical.

Um argumento fulminante a favor deste nosso pensamento pode ser fundamentado a partir de duas citações: primeiramente, o comentário de Evanildo Bechara, o maior gramático brasileiro vivo (que concorda com os colegas supracitados quanto a essa questão):

Muitos verbos apontados outrora como defectivos são hoje conjugados integralmenteagir, advir, compelir, desmedir-se, discernir, embair, emergir, imergirfruir, polir, prazer, submergir. Ressarcir e refulgir (que alguns gramáticos só mandam conjugar nas formas em que o radical é seguido de e ou i) tendem a ser empregados como verbos completos (BECHARA, 2009, grifo nosso).
E, finalmente, a afirmação impecável do filólogo Mário Barreto:
A morfologia não tem leis especiais para excluir de sua formação total nenhum dos verbos que se têm por defectivos. Nenhuma lei de estrutura se opõe a que se forme abole, colorem, pule, bane, demulo. Empregá-los numa forma e deixar de empregá-los noutra é coisa que toca ao uso (BARRETO, apud JUCÁ FILHO, 1981, p. 108-109).

Talvez não seja preciso dizer mais nada, não é mesmo? 

Para arrematar, deixemos claro que as condenadas conjugações não são, de maneira nenhuma, exclusividade do uso coloquial, mas próprias da língua escrita culta. Em seu Guia de Uso do Português, a linguista Maria Helena de Moura Neves reconhece a existência desses usos condenados "nas lições tradicionais" (NEVES, 2003, p. 329) e fornece exemplos retirados de A História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman ("Mesmo que uma revolução exploda em circunstâncias que não parecem tão complicadas..."), e de uma edição da Folha de S. Paulo ("E o futuro e o país que explodam"). Temos até mesmo o amparo do filólogo português Rodrigo de Sá Nogueira, que diz o seguinte, em seu Dicionário de verbos portugueses conjugados, sobre o verbo explodir e vários outros de mesma natureza:

Considera-se em geral defectivo este[s] verbo[s], dizendo-se que lhe[s] faltam: a 1ª pessoa do singular do presente do indicativo e todas as do presente do subjuntivo. Reputo este critério injustificável e, portanto, insubsistente. Por isso, dou a conjugação completa (NOGUEIRA, 1978, p. 174).

Talvez nossa língua aja como a bomba descrita na crônica de Drummond, pouco se importando com a gramática... e se sentindo farta de ser controlada por quem não reconhece aqueles usos já legitimados na própria escrita culta.

________________________

¹ Reforçando essa afirmativa, Vera Cristina Rodrigues, em Dicionário de Verbos da Língua Portuguesa (2003), reconhece que, embora verbos como eclodir, erodir e implodir sejam considerados tradicionalmente defectivos, "as formas do presente do subjuntivo vêm sendo usadas até mesmo na linguagem escrita" (p. 203).


² Para o leigo, talvez seja difícil compreender e definir o papel dos dicionários, já que, de modo geral, eles exibem tanto uma faceta descritiva quanto outra prescritiva (isto é, normativa). Em alguns verbetes, registram usos condenados pelos gramáticos (e sem indicar qualquer informalidade ou divergência em relação à norma culta); em outros, recomendam evitar este ou aquele uso ou até mesmo condenam determinadas formas. É o caso, por exemplo, da locução "através de" (registrada nessas obras com o sentido de "por meio de") e da conjunção "enquanto" (verbetada com o sentido de "como", "considerado como", "na qualidade de", "sob o aspecto") (HOUAISS, 2009; AURÉLIO, 2009), que têm esses significados condenados pela maioria dos gramáticos. Tal característica merece ser comentada e debatida em outro texto, mas podemos desde já dizer que, em parte, isso deve servir para provar o quanto os dicionários se encontram mais de acordo com vários usos consolidados na linguagem culta do que as gramáticas, mais conservadoras e resistentes às mudanças.