“O gênero é, de um modo geral, uma característica convencional dos substantivos historicamente fixada pelo uso.”
(Gramática Houaiss, José Carlos de Azeredo)
“A distinção do gênero nos substantivos só tem fundamento na tradição fixada pelo USO e pela NORMA; nada justifica serem, em português, masculinos lápis, papel, bolo e femininos caneta, folha, bola.”
(Gramática Fácil, Evanildo Bechara)
Recentemente, uma corruptela cometida pelo ministro da Justiça durante uma audiência pública chamou a atenção de muita gente: conge, síncope1 de cônjuge. Aproveitando que a palavra está em evidência, poderíamos explorar uma questão interessante em torno de seu gênero gramatical, que é alvo de discórdia entre obras de referência: sua consolidação como substantivo comum de dois gêneros, em coexistência com a forma tradicionalmente prescrita – sobrecomum.
Provavelmente, você aprendeu na escola, em algum cursinho ou em algum lugar por aí que “cônjuge” é sobrecomum, nome dado ao substantivo que tem um gênero gramatical determinado (masculino ou feminino) e invariável que serve2 para designar as pessoas de ambos os sexos (exemplos de sobrecomuns masculinos: o algoz, o apóstolo, o ente, o carrasco, o indivíduo, o ser, o sujeito; exemplo de sobrecomuns femininos: a testemunha, a vítima, a criança, a criatura, a pessoa). Assim, temos o cônjuge masculino e o cônjuge feminino (ou cônjuge do sexo feminino). É assim que muitos gramáticos (Bechara, Celso Cunha, Rocha Lima, Napoleão, Sacconi) e dicionaristas (Houaiss, Aurélio) classificam o vocábulo. Para concurseiros e vestibulandos, é tudo o que importa. Mas essa regra reflete parte da realidade da língua, que ignora o uso consolidado que o substantivo já adquiriu como comum de dois gêneros: o cônjuge, a cônjuge. E, não, isso não é nenhum papo de defensor de vale-tudo. Vejamos.
O substantivo veio do latim conjugis, declinação de conjux (associação de con- com jugare e jungere, que significam “unir”, “ligar”), que sempre foi, na língua dos romanos, substantivo comum de dois gêneros, ou seja, aquele que tem uma única forma para designar ambos os sexos (o consorte, a consorte). Essa declinação ingressa no português no comecinho do século XIX e, desde então, gramáticos observaram seu emprego e procuraram fixar seu gênero. Em 1881, Júlio Ribeiro – que anos depois se tornaria patrono da ABL – asseverou em sua Grammatica Portugueza (a primeira obra a gramatizar a variante brasileira do português): “Os substantivos que têm uma só fórma para designar ambos os sexos chamam-se communs de dous, ex.: artifice — cônjuge — guia” (p. 80).
Registros dessa palavra com gênero feminino na época dos Oitocentos não faltam. Em O Instituto, jornal literário e científico de Portugal, consta: “A cônjuge manifesta na gravidez uma glória” (1863, p. 251). Nos Annaes do Parlamento Brazileiro, temos: “Na Inglaterra não se admitte que o ulterior casamento legitime a preexistente prole; porém ainda que seja celebrado estando a cônjuge grávida e a parir immediatamente, uma vez que o feto seja dado á luz depois do casamento, fica sendo legítimo”(1880, p. 25).
Apesar disso, o emprego de “o cônjuge” para ambos os sexos parece ter prevalecido, e muitos gramáticos e dicionaristas estabeleceram seu gênero como exclusivamente masculino, sob a qualificação de sobrecomum: o cônjuge feminino, o cônjuge mulher (sim, muito estranho). Já no meio jurídico, consagraram-se até mesmo as formas cônjuge virago e cônjuge varoa3 para se referir a mulheres. Convenhamos: é muita bizarrice em nome de tradições que, sabe-se lá por quê, são mantidas artificialmente em detrimento de um uso que soa muito mais natural na língua: a cônjuge. Em meados dos 70, em seu Dicionário de linguística, o filólogo Zélio Jota constatava que
tende a língua a passar alguns desses nomes [sobrecomuns], os menos usuais, à categoria dos comuns-de-dois, como já ocorreu a chefe, atualmente masculino ou feminino, conforme se refira a homem ou a mulher, e vem ocorrendo a o, a algoz, o, a cônjuge etc. (1976, p. 150).
Isso é reforçado em verbete da obra mais adiante (p. 311):
Quando ainda não do domínio público, os sobrecomuns cuja terminação se presta à dualidade genérica acabarão por se diferirem através do artigo: o cônjuge (o esposo), a cônjuge (a esposa), o algoz, a algoz, o chefe, a chefe.
Como se pode notar, não se trata de fenômeno ocorrido isolada/exclusivamente com uma só palavra. Seguem outros exemplos de substantivos originalmente fixados como sobrecomuns (masculinos) que o uso flexibilizou como comuns de dois gêneros: o/a modelo (bizarramente, até hoje gramáticos e dicionaristas insistem em admitir apenas a forma masculina para ambos: “O modelo Gisele Bündchen”4); o/a médium (antigamente, só se dizia coisas como “O médium Anna Prado incorporou um espírito”). É por isso mesmo que, hoje em dia – apesar de prescrições em contrário –, tem se tornado cada vez mais comum encontrar obras de referência que legitimam “a cônjuge”. Neves, em sua Gramática de usos do português (2000, p. 152), abona:
O substantivo cônjuge ocorre também com concordância no feminino, quando referente a mulher [Exemplos]:
Uma forma sutil de aferir a americanização de um determinado país é verificar a importância atribuída à cônjuge do chefe de Estado (revista VEJA).
O senador aludia à ex-cônjuge como "aquela mulher" (revista VEJA).
No Dicionário de erros correntes da língua portuguesa, de Bosco e Gobbes, consta:
Cônjuge. Cada uma das pessoas ligadas pelo casamento em relação à outra. Substantivo comum de dois gêneros: o cônjuge, a cônjuge (2009, p. 69).
Segue um apanhado de vários registros de cônjuge como substantivo de dois gêneros: Dicionário de dificuldades do Cegalla (2009, p. 98)5; Dicionário da língua portuguesa comentado pelo professor Pasquale (2009); Gramática da Língua Portuguesa, de Carlos Góis e Herbert Palhano (1965); Dicionário da língua portuguesa da Academia Brasileira de Letras, elaborado pelo filólogo Antenor Nascentes (1988); Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras (todas as edições publicadas até hoje: 1981, 1998, 1999, 2004 e 2009)6.
Essa femini(li)zação de cônjuge se estendeu também à linguagem forense, na qual esse substantivo é muito usual. Embora o juridiquês seja muito pautado pela abordagem mais tradicional, erudita e conservadora da gramática, vários especialistas em português jurídico vêm abonando há tempos esse substantivo como comum de dois gêneros. Em A linguagem do juiz (1996), Geraldo Amaral reconhece que “não haverá inconveniente em usarmos o cônjuge e a cônjuge”, observando inclusive que “o latim, sua fonte próxima, lhe confere os dois gêneros, com certa preferência pelo feminino” (p. 37-38); Adalberto Kaspary, um dos maiores e mais respeitados especialistas em linguagem jurídica do país, endossa “a cônjuge” e entende que “não há razão para se continuar dizendo ‘cônjuge varão’ (ou o cônjuge marido) e o cônjuge mulher (ou o ‘cônjuge virago’) à maneira tradicional” (2014, p. 22); e outro grande estudioso da área, José Maria da Costa, autor do Manual de redação jurídica, faz extenso e exaustivo levantamento bibliográfico, com o qual conclui estar “autorizado o uso de o cônjuge e a cônjuge” (2017, p. 157).
Estou com os autores supracitados e concordo ainda mais com este último, a respeito de questões assim, invocando o princípio in dubio pro libertate: diante da divergência entre autoridades e referências, deve-se conceder liberdade de emprego ao usuário (COSTA, 2007, p. 275). Certamente, exames eliminatórios ainda seguirão por um bom tempo a tradição, condicionando candidatos ao emprego exclusivo da forma sobrecomum, sob risco de serem apenados nas provas. Mas ninguém deve pretender que a língua culta se paute e se submeta aos critérios mais formais e rigorosos de concursos e vestibulares (que acabam seguindo à risca a bibliografia tradicional). Fora desse âmbito, não há razão para condenar a cônjuge, que, convenhamos, soa muito mais natural do que “o cônjuge feminino” ou – mais bizarro ainda – “cônjuge virago” e “cônjuge varoa”... Deus nos livre e guarde.
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1 Síncope é termo usado em Linguística para indicar o desaparecimento de fonema(s) no interior de um vocábulo (Exemplos: senhor >>> sô; maior >>> mor).
2 Vale citar aqui a observação de Ferrarezi Jr. e Teles (2008, p. 133): “[...] a gramática tradicional se equivoca ao dizer que os substantivos sobrecomuns servem aos dois gêneros. Na verdade, esses substantivos possuem um único e implícito gênero definido na língua. O fato de que eles sirvam para o falante se referir a referentes de dois sexos biológicos distintos não faz deles palavras de dois gêneros gramaticais”.
3 Há juristas que se opõem ao uso desses termos. Luciano Correia da Silva, embora prescreva somente o sobrecomum nesse caso, observa: “Tropeçamos diariamente com essas palavras na linguagem do foro, delas não se eximindo juízes, promotores, advogados e escrivães. Aprenderam nas gramáticas, ou na escola, que o feminino de varão é virago, ou, forma popular, varoa. Tudo isso está muito bem, em princípio, na repetição comodista de muitos gramáticos despreocupados com a língua viva, onde se deve buscar o sentido real das palavras e locuções. Pois o uso de virago, se não fosse um erro, seria, no mínimo, uma impropriedade reprochável, ou franca revelação de mau gosto. Ao que consta, virago tem sentido pejorativo, exatamente como encontramos em Os Sertões, de Euclides da Cunha [...]. Aurélio não registra o verbete senão com esse significado, remetendo ao sinônimo machão. Varoa também não é coisa que se diga, pelo menos sem o ranço de vulgaridade” (SILVA, 1991, p. 167-168).
4 Em casos assim, até manuais de redação mais conservadores linguisticamente, como o do Estadão, deixam de seguir o que é previsto formalmente: “Os dicionários só registram ‘modelo’ como substantivo masculino, o que obrigaria a escrever ‘o modelo’ Luiza Brunet. Em benefício do bom senso, o Estado grafa ‘a modelo’ Luiza Brunet” (MARTINS, 1990, p. 12).
5 Contraditoriamente, o autor preceitua cônjuge exclusivamente como sobrecomum masculino em outras passagens desta mesma obra e em sua própria gramática. Teria ele mudado de pensamento em relação à sua classificação tradicional, mas esquecido/deixado de atualizar as demais ocorrências sobre o assunto em suas obras? Ou apenas se equivocado? Tendo o gramático falecido em 2013, jamais teremos certeza.
6 Curiosa e contraditoriamente, em sua atual versão eletrônica, o Volp registra cônjuge apenas como “substantivo masculino”. No entanto, entre as cinco edições históricas (de 1981 a 2009) registrando o substantivo como comum de dois gêneros e uma versão eletrônica tratando-o como sobrecomum, é claro que fico com as versões impressas. Ora, não faz sentido que o Vocabulário REGRIDA em relação a uma condição gramatical que se consolidou na língua culta e que vinha sendo abonada, durante todo esse tempo, pela própria obra.
REFERÊNCIAS
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Vocabulário ortográfico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Bloch, 1981.
______. Vocabulário ortográfico da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1998.
______. Vocabulário ortográfico da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: A Academia, 1999.
______. Vocabulário ortográfico da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: A Academia, 2004.
______. Vocabulário ortográfico da língua portuguesa. 5. ed. São Paulo: Global, 2009.
AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da língua portuguesa, 2. ed. São Paulo: Publifolha, 2008.
BECHARA, Evanildo. Gramática fácil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.
BOSCO, João Medeiros; GOBBES, Adilson. Dicionário de erros correntes da língua portuguesa. 5. ed. São Paulo Atlas, 2009.
BRASIL. Parlamento. Câmara dos Srs. Deputados. Annaes do Parlamento Brazileiro. Volume 2. Rio de Janeiro: Tipographia do Imperial Instituto Artístico, 1880.
CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de dificuldades da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2009.
COSTA, José Maria da. Manual de redação jurídica. 6 ed. São Paulo: Migalhas, 2017.
GÓIS, Carlos; PALHANO, Herbert. Gramática da língua portuguesa. 5. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1963, p. 49 e 52.
GREGORIM, Clóvis Osvaldo et al. Dicionário da Língua Portuguesa comentado pelo professor Pasquale. Barueri: Gold Editora, 2009.
JOTA, Zélio dos Santos. Dicionário de linguística. Rio de Janeiro: Presença, 1976.
KASPARY, Adalberto José. Habeas verba: português para juristas. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018.
LUFT, Celso. Dicionário gramatical da língua portuguesa. Porto Alegre: Globo, 1967.
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NASCENTES, Antenor. Dicionário da língua portuguesa da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: Bloch, 1988.
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O INSTITUTO. Jornal scientifico e litterario. Sciencias moraes e sociaes. Exposição de engeitados. Volume undécimo. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1863.
RIBEIRO, Júlio. Grammatica portugueza. São Paulo: Typographia de Jorge Seckler, 1881.
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SOUSA, A. M. Dificuldades sintáticas e flexionais. Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1958.