quarta-feira, 22 de abril de 2015

"Statu quo" versus "status quo"

A expressão latina in statu quo res erant ante bellum (no estado em que as coisas estavam antes da guerra) foi concebida no latim diplomático do século XVI, quando passou a ser usada em tratados de paz, nos quais os beligerantes (ou litigantes) aceitavam voltar à situação anterior à guerra (ou ao litígio) (CEGALLA, 2009)No século XVII, surgiu a redução in statu quo, que, a partir do século XIX, se reduz ainda mais para statu quo, sofrendo concorrência, em algumas línguas europeias, da variante status quo. De acordo com Houaiss (2001, p. 1626),

por influência do inglês, divulga-se, no século XX,* a forma status quo, algo híbrida, por uma sintaxe em que status é [caso de declinação] nominativo e quo continua no [caso de declinação] ablativo, perdendo-se razão de ser da braquilogia.

An etymological dictionary, William Grimshaw (1821)
Para o gramático latinista Napoleão Mendes de Almeida, a expressão se cristalizou na forma ablativa [statu], que é assim usada substantivadamente com qualquer função sintática”, sendo infundados os raciocínios para justificar status quo (ALMEIDA, 1981, p. 304). Tal como Houaiss, ele acusa a língua inglesa pelo uso que fazemos em português:  “o culpado da intromissão em nosso idioma da forma status quo é o inglês, onde existe status como forma comum (ALMEIDA, 1981, p. 304).


Muitos latinófilos provavelmente concordam com esse parecer do Napoleão e o dão como definitivo. Todavia, para a infelicidade deles, a influência inglesa que nos legou a forma consagrada por estas bandas (em uso pelo menos desde o início do século XIX) veio para ficar. Gramáticos, filólogos, dicionaristas, manuais de redação e obras de referência diversas já abraçaram e disseminaram a heresia, e tudo indica que ela já se tornou doutrina...

Em alguns registros, chega-se a afirmar que a variante condenada por Napolatim é justamente aquela pela qual se tem preferência: o dicionarista Aurélio registra status quo, informando ser esta forma preferível a statu quo” (FERREIRA, 2009), com o que concorda o gramático Gama Kury, dizendo ser status quo forma que se prefere a statu quo (KURY, 1983, p. 123).

Outros gramáticos também abonam status quo: “É menos usada a forma correta original statu quo (CEGALLA, 2009, p. 369); status quo é a forma usual; mas puristas descobriram que ‘deve’ ser statu quo, ambas as palavras no ablativo...” (LUFT, 2010, p. 459). A eles, une-se até um imortal da Academia Brasileira de Letras, Domício Proença Filho: A construção com s é mais usual do que statu quo” (PROENÇA FILHO, 2003, p. 118). Os manuais de redação de jornal como os do Estadão (MARTINS FILHO, 1997) e dos Diários Associados (SQUARISI, 2005) ignoram a forma latina original, registrando apenas a mais usual, do mesmo modo que Sacconi (2013, p. 844), Ernani & Nicola (2o03, p. 230), Gobbes et al. (1995, p. 124) e Neves (2003, p. 722).


E o crime de lesa-latim não para por aí: um manual de redação oficial faculta o uso entre statu e status (OLIVEIRA, 2005, p. 244), o que se dá também num manual de português jurídico: Admite-se também a forma status quo (PAIVA, 2013, 1999). O grande filólogo português José Pedro Machado, autor de Estrangeirismos na língua portuguesa, também faculta o uso: Também se usa status quo” (MACHADO, 1994, p. 224).

É verdade que vários dicionários (como o Houaiss) registram apenas a forma original (statu quo) e que várias outras obras prescrevem a mesma lição. No entanto, com tantas referências de peso e prestígio (Luft, Cegalla, Sacconi, Gama Kury, Aurélio etc.) legitimando status quo, não é de se estranhar que tanta gente língua afora continue usando a forma condenada por Napolatim. De fato, uma consulta em ferramentas de busca por edições anteriores de vários jornais (EstadãoFolhaO Globo, Correio Braziliense etc.) evidencia o quanto status quo é mais usual. É a forma que aparece registrada, por exemplo, em várias dezenas de ocorrências do clássico acadêmico Dicionário de política, de Norberto Bobbio.

Conclusão: os latinófilos pregarão statu quo e ponto final; o professor atento ensinará — e o revisor criterioso grafará — statu quo; todavia, duvido muito que ainda assim consigam um dia virar o jogo contra a variante, consagrada pelo uso e abonada por inúmeras obras de referência.


* Engano do Houaiss. Há vários livros, publicações, jornais e documentos brasileiros do início do século XIX que já vinham utilizando status quo.


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Napoleão Mendes. Dicionário de questões vernáculas. São Paulo: Caminho Suave, 1981.

CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de dificuldades da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2009.

DE NICOLA, José;  MENÓN, Lorena; TERRA, Ernani. 1001 estrangeirismos de uso corrente em nosso cotidiano. São Paulo: Saraiva, 2003.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2009.

GOBBES, Adilson et al. Erros correntes da língua portuguesa: dicionário de questões de linguagem. São Paulo: Atlas, 1995.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

KURY, Adriano da Gama. 1.000 perguntas: português. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1983.

LIMA, Antônio Oliveira. Manual de redação oficial. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.

LUFT, Celso. ABC da língua culta. São Paulo: Globo, 2010.

MACHADO, José Pedro. Estrangeirismos na língua portuguesa. Lisboa: Editorial Notícias, 1994.

MARTINS FILHO, Eduardo Lopes. Manual de redação de O Estado de S. Paulo. 3. ed. São Paulo: O Estado de S. Paulo, 1997.

NEVES, Maria Helena de Moura. Guia de uso do português. São Paulo: Unesp, 2003.

PAIVA, Marcelo. Português jurídico. Brasília: Leya, 2013.

PROENÇA FILHO, Domício. Por dentro das palavras da nossa língua portuguesa. Rio de Janeiro, Record, 2003.

SACCONI, Luiz Antônio. Minidicionário Sacconi. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

SQUARISI, Dad. Manual de redação e estilo. Brasília: Fundação Assis Chateaubriand, 2005.