terça-feira, 23 de abril de 2019

O substantivo "comum de dois cônjuges"



“O gênero é, de um modo geral, uma característica convencional dos substantivos historicamente fixada pelo uso.
(Gramática Houaiss,  José Carlos de Azeredo)



“A distinção do gênero nos substantivos só tem fundamento na tradição fixada pelo USO e pela NORMA; nada justifica serem, em português, masculinos lápis, papel, bolo e femininos caneta, folha, bola.
(Gramática Fácil, Evanildo Bechara)


Recentemente, uma corruptela cometida pelo ministro da Justiça durante uma audiência pública chamou a atenção de muita gente: conge, síncope1 de cônjuge. Aproveitando que a palavra está em evidência, poderíamos explorar uma questão interessante em torno de seu gênero gramatical, que é alvo de discórdia entre obras de referência: sua consolidação como substantivo comum de dois gêneros, em coexistência com a forma tradicionalmente prescrita – sobrecomum.


Provavelmente, você aprendeu na escola, em algum cursinho ou em algum lugar por aí que “cônjuge” é  sobrecomumnome dado ao substantivo que tem um gênero gramatical determinado (masculino ou feminino) e invariável que serve2 para designar as pessoas de ambos os sexos (exemplos de sobrecomuns masculinos: o algoz, o apóstolo,  o ente, o carrasco, o indivíduo, o ser, o sujeito; exemplo de sobrecomuns femininos: a testemunha, a vítima, a criança, a criatura, a pessoa). Assim, temos o cônjuge masculino e o cônjuge feminino (ou cônjuge do sexo feminino). É assim que muitos gramáticos (Bechara, Celso Cunha, Rocha Lima, Napoleão, Sacconi) e dicionaristas (Houaiss, Aurélio) classificam o vocábulo. Para concurseiros e vestibulandos, é tudo o que importa. Mas essa regra reflete parte da realidade da língua, que ignora o uso consolidado que o substantivo já adquiriu como comum de dois gêneros: o cônjuge, a cônjuge. E, não, isso não é nenhum papo de defensor de vale-tudo. Vejamos.


O substantivo veio do latim conjugis, declinação de conjux (associação de con- com jugare e jungere, que significam “unir”, “ligar”), que sempre foi, na língua dos romanos, substantivo comum de dois gêneros, ou seja, aquele que tem uma única forma para designar ambos os sexos (o consorte, a consorte). Essa declinação ingressa no português no comecinho do século XIX e, desde então, gramáticos observaram seu emprego e procuraram fixar seu gênero. Em 1881, Júlio Ribeiro – que anos depois se tornaria patrono da ABL – asseverou em sua Grammatica Portugueza (a primeira obra a gramatizar a variante brasileira do português): Os substantivos que têm uma só fórma para designar ambos os sexos chamam-se communs de dous, ex.: artifice — cônjuge — guia (p. 80).


Registros dessa palavra com gênero feminino na época dos Oitocentos não faltam. Em O Instituto, jornal literário e científico de Portugal, consta: A cônjuge manifesta na gravidez uma glória (1863, p. 251). Nos Annaes do Parlamento Brazileiro, temos: “Na Inglaterra não se admitte que o ulterior casamento legitime a preexistente prole; porém ainda que seja celebrado estando a cônjuge grávida e a parir immediatamente, uma vez que o feto seja dado á luz depois do casamento, fica sendo legítimo”(1880, p. 25).


Apesar disso, o emprego de “o cônjuge” para ambos os sexos parece ter prevalecido, e muitos gramáticos e dicionaristas estabeleceram seu gênero como exclusivamente masculino, sob a qualificação de sobrecomum: o cônjuge feminino, o cônjuge mulher (sim, muito estranho). Já no meio jurídico, consagraram-se até mesmo as formas cônjuge virago e cônjuge varoa3 para se referir a mulheresConvenhamos: é muita bizarrice em nome de tradições que, sabe-se lá por quê, são mantidas artificialmente em detrimento de um uso que soa muito mais natural na língua: a cônjuge. Em meados dos 70, em seu Dicionário de linguística, o filólogo Zélio Jota constatava que


tende a língua a passar alguns desses nomes [sobrecomuns], os menos usuais, à categoria dos comuns-de-dois, como já ocorreu a chefe, atualmente masculino ou feminino, conforme se refira a homem ou a mulher, e vem ocorrendo a o, a algoz, o, a cônjuge etc. (1976, p. 150).

Isso é reforçado em verbete da obra mais adiante (p. 311):


Quando ainda não do domínio público, os sobrecomuns cuja terminação se presta à dualidade genérica acabarão por se diferirem através do artigo: o cônjuge (o esposo), a cônjuge (a esposa), o algoz, a algoz, o chefe, a chefe.

Como se pode notar, não se trata de fenômeno ocorrido isolada/exclusivamente com uma só palavra. Seguem outros exemplos de substantivos originalmente fixados como sobrecomuns (masculinos) que o uso flexibilizou como comuns de dois gêneros: o/a modelo (bizarramente, até hoje gramáticos e dicionaristas insistem em admitir apenas a forma masculina para ambos: “O modelo Gisele Bündchen”4); o/a médium (antigamente, só se dizia coisas como “O médium Anna Prado incorporou um espírito). É por isso mesmo que, hoje em dia – apesar de prescrições em contrário –, tem se tornado cada vez mais comum encontrar obras de referência que legitimam “a cônjuge”. Neves, em sua Gramática de usos do português (2000, p. 152), abona:


O substantivo cônjuge ocorre também com concordância no feminino, quando referente a mulher [Exemplos]:
Uma forma sutil de aferir a americanização de um determinado país é verificar a importância atribuída à cônjuge do chefe de Estado (revista VEJA).
O senador aludia à ex-cônjuge como "aquela mulher" (revista VEJA).

 No Dicionário de erros correntes da língua portuguesa, de Bosco e Gobbes, consta:


Cônjuge. Cada uma das pessoas ligadas pelo casamento em relação à outra. Substantivo comum de dois gêneros: o cônjuge, a cônjuge (2009, p. 69).

Segue um apanhado de vários registros de cônjuge como substantivo de dois gênerosDicionário de dificuldades do Cegalla (2009, p. 98)5Dicionário da língua portuguesa comentado pelo professor Pasquale (2009); Gramática da Língua Portuguesa, de Carlos Góis e Herbert Palhano (1965); Dicionário da língua portuguesa da Academia Brasileira de Letras, elaborado pelo filólogo Antenor Nascentes (1988); Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras (todas as edições publicadas até hoje: 1981, 1998, 1999, 2004 e 2009)6.


Essa femini(li)zação de cônjuge se estendeu também à linguagem forense, na qual esse substantivo é muito usual. Embora o juridiquês seja muito pautado pela abordagem mais tradicional, erudita e conservadora da gramática, vários especialistas em português jurídico vêm abonando há tempos esse substantivo como comum de dois gêneros. Em A linguagem do juiz (1996), Geraldo Amaral reconhece que “não haverá inconveniente em usarmos o cônjuge e a cônjuge”, observando inclusive que “o latim, sua fonte próxima, lhe confere os dois gêneros, com certa preferência pelo feminino” (p. 37-38); Adalberto Kaspary, um dos maiores e mais respeitados especialistas em linguagem jurídica do país, endossa a cônjuge e entende que “não há razão para se continuar dizendo ‘cônjuge varão’ (ou o cônjuge marido) e o cônjuge mulher (ou o ‘cônjuge virago’) à maneira tradicional” (2014, p. 22); e outro grande estudioso da área, José Maria da Costa, autor do Manual de redação jurídica, faz extenso e exaustivo levantamento bibliográfico, com o qual conclui estar “autorizado o uso de o cônjuge e a cônjuge” (2017, p. 157).


Estou com os autores supracitados e concordo ainda mais com este último, a respeito de questões assim, invocando o princípio in dubio pro libertate: diante da divergência entre autoridades e referências, deve-se conceder liberdade de emprego ao usuário (COSTA, 2007, p. 275). Certamente, exames eliminatórios ainda seguirão por um bom tempo a tradição, condicionando candidatos ao emprego exclusivo da forma sobrecomum, sob risco de serem apenados nas provas. Mas ninguém deve pretender que a língua culta se paute e se submeta aos critérios mais formais e rigorosos de concursos e vestibulares (que acabam seguindo à risca a bibliografia tradicional). Fora desse âmbito, não há razão para condenar a cônjuge, que, convenhamos, soa muito mais natural do que “o cônjuge feminino” ou – mais bizarro ainda – “cônjuge virago” e “cônjuge varoa”... Deus nos livre e guarde.

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1 Síncope é termo usado em Linguística para indicar o desaparecimento de fonema(s) no interior de um vocábulo (Exemplos: senhor >>> sô; maior >>> mor).

2 Vale citar aqui a observação de Ferrarezi Jr. e Teles (2008, p. 133): “[...] a gramática tradicional se equivoca ao dizer que os substantivos sobrecomuns servem aos dois gêneros. Na verdade, esses substantivos possuem um único e implícito gênero definido na língua. O fato de que eles sirvam para o falante se referir a referentes de dois sexos biológicos distintos não faz deles palavras de dois gêneros gramaticais”.

3 Há juristas que se opõem ao uso desses termos. Luciano Correia da Silva, embora prescreva somente o sobrecomum nesse caso, observa: “Tropeçamos diariamente com essas palavras na linguagem do foro, delas não se eximindo juízes, promotores, advogados e escrivães. Aprenderam nas gramáticas, ou na escola, que o feminino de varão é virago, ou, forma popular, varoa. Tudo isso está muito bem, em princípio, na repetição comodista de muitos gramáticos despreocupados com a língua viva, onde se deve buscar o sentido real das palavras e locuções. Pois o uso de virago, se não fosse um erro, seria, no mínimo, uma impropriedade reprochável, ou franca revelação de mau gosto. Ao que consta, virago tem sentido pejorativo, exatamente como encontramos em Os Sertões, de Euclides da Cunha [...]. Aurélio não registra o verbete senão com esse significado, remetendo ao sinônimo machão. Varoa também não é coisa que se diga, pelo menos sem o ranço de vulgaridade” (SILVA, 1991, p. 167-168).

4 Em casos assim, até manuais de redação mais conservadores linguisticamente, como o do Estadão, deixam de seguir o que é previsto formalmente: Odicionários só registram ‘modelo’ como substantivo masculino, o que obrigaria a escrever ‘o modelo’ Luiza Brunet. Em benefício do bom senso, o Estado grafa ‘a modelo’ Luiza Brunet” (MARTINS, 1990, p.  12).

5 Contraditoriamente, o autor preceitua cônjuge exclusivamente como sobrecomum masculino em outras passagens desta mesma obra e em sua própria gramática. Teria ele mudado de pensamento em relação à sua classificação tradicional, mas esquecido/deixado de atualizar as demais ocorrências sobre o assunto em suas obras? Ou apenas se equivocado? Tendo o gramático falecido em 2013, jamais teremos certeza.

6 Curiosa e contraditoriamente, em sua atual versão eletrônica, o Volp registra cônjuge apenas como “substantivo masculino”. No entanto, entre as cinco edições históricas (de 1981 a 2009) registrando o substantivo como comum de dois gêneros e uma versão eletrônica tratando-o como sobrecomum, é claro que fico com as versões impressas. Ora, não faz sentido que o Vocabulário REGRIDA em relação a uma condição gramatical que se consolidou na língua culta e que vinha sendo abonada, durante todo esse tempo, pela própria obra.




REFERÊNCIAS


ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Vocabulário ortográfico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Bloch, 1981.


______. Vocabulário ortográfico da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1998.


______. Vocabulário ortográfico da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: A Academia, 1999.


______. Vocabulário ortográfico da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: A Academia, 2004.


______. Vocabulário ortográfico da língua portuguesa. 5. ed. São Paulo: Global, 2009.



AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da língua portuguesa, 2. ed. São Paulo: Publifolha, 2008. 



BECHARA, Evanildo. Gramática fácil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.


BOSCO, João Medeiros; GOBBES, Adilson. Dicionário de erros correntes da língua portuguesa. 5. ed. São Paulo Atlas, 2009.


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CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de dificuldades da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2009.


COSTA, José Maria da. Manual de redação jurídica. 6 ed. São Paulo: Migalhas, 2017.


GÓIS, Carlos; PALHANO, Herbert. Gramática da língua portuguesa. 5. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1963, p. 49 e 52.


GREGORIM, Clóvis Osvaldo et al. Dicionário da Língua Portuguesa comentado pelo professor Pasquale. Barueri: Gold Editora, 2009.


JOTA, Zélio dos Santos. Dicionário de linguística. Rio de Janeiro: Presença, 1976.



KASPARY, Adalberto José. Habeas verba: português para juristas. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018.


LUFT, Celso. Dicionário gramatical da língua portuguesa. Porto Alegre: Globo, 1967.


MARTINS, Eduardo (Org.). Manual de redação e estilo. São Paulo: O Estado de S. Paulo, 1990.


NASCENTES, Antenor. Dicionário da língua portuguesa da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: Bloch, 1988.


NEVES, Maria Helena Moura de. Gramática de usos do português. São Paulo: Unesp, 2000.


O INSTITUTO. Jornal scientifico e litterario. Sciencias moraes e sociaes. Exposição de engeitados. Volume undécimo. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1863.


RIBEIRO, Júlio. Grammatica portugueza. São Paulo: Typographia de Jorge Seckler, 1881.


SILVA, Luciano Correia da. Manual de linguagem forense. São Paulo: Edipro, 1991.


SOUSA, A. M. Dificuldades sintáticas e flexionais. Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1958.

domingo, 6 de março de 2016

"Através de" com sentido de "por meio de": o erro não está no uso, e sim no abuso


Existe uma paranoia logicista que assombra de modo tão implacável aqueles que buscam a correção gramatical que acaba por torná-los mais rigorosos e conservadores do que os próprios gramáticos. A meu ver, parte da responsabilidade por essa obsessão pode ser atribuída, hoje, a manuais de redação e estilo. Estes, criados para padronizar e adequar a linguagem dos jornais, são vendidos como legítimos e completos substitutos de gramáticas, e várias opções de uso linguístico que neles são selecionadas e padronizadas (para os respectivos jornais) acabam sendo obedecidas e praticadas como regra generalizada para todo e qualquer texto em português. É neles que encontramos a seguinte cagação de regra:
A locução, no seu sentido correto, equivale a por dentro de, de um lado a outro, ao longo de: Cavalgou através de prados e florestas. / Viajou através de todo o país. / Olhava através da janela. / Foi sempre o mesmo homem honesto através de anos e anos. 3 — Por isso não use através de como por meio de, por intermédio de ou por simplesmente, preferindo uma dessas formas: Soube da notícia pelo (e não “através do”) rádio, pela imprensa, pela televisão
(Manual de Redação e Estilo de O Estado de S. Paulo, Eduardo Martins, 1997)
A locução através de pertence à família do verbo atravessar. Deve, portanto, ser empregada no sentido de passar de um lado a outro, ou passar ao longo de: Vejo o jardim através da janela (meu olhar atravessa a janela e chega ao jardim). O conceito de beleza mudou através dos tempos (ao longo do tempo, o belo foi adquirindo significados diferentes). Evite usar através de em lugar de mediante, por meio de, por intermédio de, graças a ou da preposição por: Falei com ele pelo telefone. O acerto será feito mediante acordo de líderes. A notícia chegou por intermédio dos familiares da vítima
(Manual de redação e estilo, Dad Squarisi, 2005)
Além disso, nota-se que os manuais de português jurídico (COSTA, 2007; KASPARY, 2015; PAIVA, 2014) apresentam em geral a mesma restrição. É também prática comum no meio editorial substituir os empregos metafóricos dessa locução prepositiva, sendo raro encontrar revisores de texto que não corrijam tais ocorrências.

Se, por uma questão de estilo, preferência, concisão etc., jornalistas, juristas ou quaisquer outros usuários da língua preferirem evitar tal emprego, não há problema algum nisso.O problema é condenar sumariamente através de com o sentido figurado, metafórico que existe desde que o português é português e não foi inventado em nenhuma variante popular da língua. Numa carta do século XVI, um jesuíta diz:
Por algumas cartas que vos escrevemos no passado ano de 1550, demo-vos ampla informação destas partes do Brasil e de algumas coisas que Nosso Senhor quis obrar através de seus servos [...] das coisas que o Senhor opera através de cada um (PIRES, Antônio. Uma enviada da capitania de Pernambuco, 1551).

Nossos maiores clássicos, como Machado de Assis, sempre usaram:

Ele creu que era assim, mas receou também que não fosse assim; faltava-lhe o trato suficiente das mulheres para ler através de uma negativa (Dona Benedita: um retrato, Machado de Assis).
Creio que terão entendido isso mesmo, através da forma alegórica (Verba testamentária, Machado de Assis).

Diante disso, o sabichão purista, o professor chato e o revisor quadrado vão dizer: “Ah, mas esses exemplos são desvios eventuais e subjetivos; não são suficientes para servirem como exemplo de norma culta”. OK. Então, com a palavra, os gramáticos:
Antigamente, usava-se ‘através de’ apenas em casos que evidenciassem passagem de algo de um lado para o outro [...]. No português contemporâneo, tal exigência carece de sentido. Os puristas, todavia, só aceitam construções assim: Ouvi a música pelo rádio. É mediante os jornais que se toma conhecimento dos fatos. O cheque foi liquidado pelo médico do clube (SACCONI, 2005, p. 66). 
 Através de. Está generalizado o emprego desta locução no sentido de ‘por meio de’, ‘por intermédio de’. Por isso, não há senão legitimá-lo: Soube da notícia através da imprensa. / Conseguiu emprego através de um amigo influente (CEGALLA, 2009, p. 60).
Através de pode equivaler [...] em sentido translato ou figurado, a mediante, por meio de (Disse-lhe através de um amigo comum). Nesta última acepção, é impugnado por puristas, mas sem razão: é de largo uso entre os melhores escritores (NOUGUÉ, 2015, p. 384).

Raparem que nem mesmo Napoleão, mais conservador, condena tal sentido:

Não se deve cair no exagero de julgar que a locução só é possível quando significa de um lado para o outrode lado a lado (Passou através da multidão – Passou a espada através do corpo). Não vemos erro emA palavra veio-nos através do francês, como não vemos na passagem de Herculano: Através desses lábios inocentes murmuram durante alguns instantes as orações submissas (ALMEIDA, 1981, p. 33).

Ele só faz restrição quanto ao emprego da locução no agente da passiva (algo que Sacconi não faz):
O agente da passiva, em português, expressa-se pela presença de por e às vezes de: O livro é estudado por todos – Ele é estimado de todos. O gol foi marcado por tal jogador – A falta foi cobrado pelo jogador tal – O cheque foi enviado por tal banco – O assunto foi resolvido por tal decreto. Nem através de” nem por intermédio de” no agente da passiva (ALMEIDA, 1981, p. 33).3
Já o parecer de Bechara nos permite entender que o uso ou não da locução também é uma questão estilística, não de (in)correção:
O estilo moderno, ou por imitação do inglês ou por tornar mais concreto o significado de uma preposição, usa e abusa de sua substituição por uma locução prepositiva: à vista de (por ante), a bordo de (por em), de acordo com (por segundo), em torno de (por sobre), através de (por mediante), etc. (BECHARA, 2010, p. 694, grifo nosso).
Tal citação nos ajuda a entender a opção, num texto jornalístico (ou qualquer outro texto com necessidade de concisão, de economias de palavras), por formas vocabulares menores, curtas, mais compactas (havendo, portanto, razão para correção). No entanto, por que estender esse mesmíssimo critério a todo e qualquer texto (como o literário, o dissertativo etc.), adotando-o como norma universal e irrestrita? Eis uma das razões pelas quais as restritivas e filtrantes regras de manuais de redação nem sempre servem para tudo e para todos...

Vale observar que — ao contrário dos gramáticos supracitados — Bechara tem reservas quanto ao uso da locução: A rigor soa sem sentido dizer: Através do advogado requereu sua absolvição” (2010, p. 694); todavia, isso nunca o impediu de fazer largo uso dela com o sentido metafórico em seus textos:

[...] potencialidade para encontrar, através do trabalho de seus escritores, novos recursos [...] (BECHARA,  2000,  p. 120).
Em português, como em muitas outras línguas, nota-se uma tendência para evitar o hiato, através da ditongação ou da crase (BECHARA, 2009). 
O sossego do vento ou o barulho ensurdecedor do mar ganham maior vivacidade através da aliteração dos seguintes versos [...] (BECHARA, 2009).
[...] não vamos ao grego para formar palavras novas; elas nos vêm do estrangeiro, mormente de França, e agora dos países de língua inglesa, através da nomenclatura científica comum à maioria das nações cultas (BECHARA, 2009)
O fato é que mesmo os gramáticos que não abordam diretamente o fato linguístico acabam por aboná-lo por meio de textos de sua própria autoria:
-im é importação do francês -in, ou do italiano -ino, através da forma francesa (CUNHA; CINTRA, 2001, p. 91). 
O substantivo “lágrimas” relaciona-se com o adjetivo “rasos” através da preposição de (CUNHA; CINTRA, 2001, p. 138).
A antropofagia expressou-se, em literatura, especialmente através de alguns livros de Oswald de Andrade e Alcântara Machado (LUFT, Celso. 1979, p. 26).
O gramático Rocha Lima publicou em 1949 o livro Através da Oração aos Moços. O filólogo Mário Barreto escreveu uma obra chamada Através do dicionário e da gramática.  Os mais prestigiados dicionários do português (Aurélio, Houaiss etc.) e até mesmo o da Academia Brasileira de Letras registram. Especialistas e profissionais da área (PIACENTINI, 2013; MEDEIROS; GOBBES, 1995) reconhecem não haver razão para substituir a locução prepositiva. 

Como acabamos de mostrar, a condenada locução faz parte do estilo de escrita de vários de nossos principais gramáticos!

Todavia, isso não significa que, nesse círculo de autores, não exista uma linha dura quanto à questão: Amini Hauy, em sua mais recente obra, Gramática da língua portuguesa padrão (2014, p. 774), é inflexível e taxativa: “Não tendo o sentido de transpassagem, substitui-se [através de] por outra locução prepositiva: por intermédio de, por meio de ou por um preposição: mediante, com ou por”.  Intolerância igual só encontrei em Gama Kury (1983, p. 111-112). Há pelo menos um filólogo implacável em relação ao caso: o purista Gladstone Chaves de Melo, que trata o caso como “destempero que se vai tornando regra (melhor, desregra)” (2000, p. 13). 

De qualquer forma, a abonação do através de não significa reconhecer que ele não possa nem deva ser substituído, e com muita vantagem, por formas equivalentes, como um simples “por, dependendo do contexto. O problema, em vários casos, não está no uso, e sim no abuso que se faz da locução. É notório, principalmente entre autores com repertório vocabular limitado, o uso excessivo dessa expressão, a ponto de até mesmo linguistas recomendarem moderação por uma questão de estilo:

[...] usar repetidamente a locução quando, muitas vezes, uma preposição simples dava conta do recado, é algo que podemos evitar — e isso não é um “erro de português”, no sentido tradicional, mas uma questão de efeito estilístico, de produção textual. Assim, em vez de dizer que “este tratamento é feito através de antibióticos”, podemos escrever simplesmente “com antibióticos”; em vez de “o problema se resolve através do emprego da ferramenta adequada”, podemos escrever simplesmente “pelo emprego da ferramenta adequada”. Aqui, a questão não é de “gramatical”, mas de recurso excessivo a determinadas formas linguísticas que se transformam em “muletas” na hora de escrever [...] (BAGNO, 2009, p. 86).
É claro que as recomendações dos manuais de redação solicitando substituição de “através de continuam servindo perfeitamente para os jornais, se tais órgãos assim preferem; e para as editoras, pela mesma razão. Digno de nota é o critério do Manual de Redação da Folha de S. Paulo — o manual jornalístico que mais evoluiu linguisticamente, consciente das variações e sintonizado com a língua em uso:2
Segundo os dicionários, o primeiro significado de através é físico ou temporal [...]. Também se registra o emprego de através com o sentido de por intermédio de: Conseguiu a vaga através de um amigo (FOLHA, 2011, p. 126). 
Não deixa de prescrever, porém, a mesma restrição feita por Napoleão:
Não introduza o agente da passiva com através de: A revelação foi feita através de um assessor do presidente. O time venceu com um gol marcado através de fulano (FOLHA, 2011, 126).
No fim das contas, sugere a alternativa já recomendada outros autores supracitados, sem rigor:
Para evitar problemas, muitas vezes é possível substituir através de por um simples por (FOLHA, 2011, 126).
Vale observar que, na condição de revisor colaborador de editoras, devo atentar para os critérios de correção por elas estabelecidos. Não deixo jamais de fazer tal substituição se assim a editora determinar. Todavia, já está mais do que na hora de as editoras revisarem tais critérios a fim de respeitar o estilo de boa parte dos autores contemporâneos. A não ser que desejemos ser mais rigorosos e conservadores do que os próprios gramáticos — o que não faz sentido algum.

Assim, podemos concluir que, apesar da proibição imposta por guias jornalísticos, jurídicos e editoriais, o erro não está no uso metafórico de “através de”, e sim no abuso ou na aplicação inadequada da locução em certos contextos.


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1 O curioso é que a maioria dos profissionais desses jornais (para não dizer todos!) ignora tal prescrição (Você duvida? Consulte a ferramenta de busca dos sites...), reforçando ainda mais a inutilidade de tentar barrar um uso consagrado (e correto).

Isso pode ser explicado pelo fato de que o conteúdo gramatical da última edição do manual ter sido confiado a Pasquale Cipro Neto, muito criticado por linguistas no passado, mas cuja visão de língua evoluiu consideravelmente com o passar dos anos.




REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Dicionário de questões vernáculas. São Paulo: Caminho Suave, 1981.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Contos. Organização, revisão de texto e notas por Massaud Moisés. São Paulo: Cultrix, 1961. p. 27 e 78.

BAGNO, Marcos. Não é errado falar assim: em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

BECHARA, Evanildo. Gramática escolar da língua portuguesa. 10. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.

______. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2009.

______. Sesquicentenário de um grande mestre. In: ELIA, Sílvio et al. (Org.) Na ponta da língua. v. 1. Rio de Janeiro: Lucerna, 2000.

CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de dificuldades da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2009.

COSTA, José Maria da. Manual de redação profissional. 3. ed. São Paulo: Millenium, 2009.

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

ROCHA, Carlos Alberto de Macedo; ROCHA; Carlos Eduardo Penna de M. Dicionário de locuções e expressões da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2011.

FOLHA DE S. PAULO. Manual da redação. 17. ed. São Paulo: Publifolha, 2011.

HAUY, Amini Boainin. Gramática da língua portuguesa padrão. São Paulo: Edusp, 2014.

KASPARY, Adalberto J. Habeas verba: português para juristas. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

LUFT, Celso Pedro. Literatura portuguesa e brasileira. Porto Alegre: Globo, 1979.

MACHADO, Josué. Manual da falta de estilo. 2. ed. São Paulo: Editora Best Seller, 1994. p. 60.


MARTINS FILHO, Eduardo Lopes. Manual de redação e estilo. 3. ed. São Paulo: O Estado de S. Paulo, 1997.

MEDEIROS, João Bosco; GOBBES, Adilson. Erros correntes da língua portuguesa. São Paulo: Atlas, 1995.

MELO, Gladstone Chaves de. Ainda agressões ao vernáculo. In: ELIA, Sílvio et al. (Org.). Na ponta da língua. v. 1. Rio de Janeiro: Lucerna, 2000.

NOUGUÉ, Carlos. Suma gramatical da língua portuguesa. Gramática geral e avançada. São Paulo: É-Realizações, 2015.


PAIVA, Marcelo. Português jurídico. Brasília: Leya, 2014.

PIACENTINI, Maria Teresa de Queiroz. Não tropece na língua: lições e curiosidades do português brasileiro. Curitiba: Bonjuris, 2012.

PIRES, Antônio. Uma enviada da capitania de Pernambuco, 1551. In: HUE, Sheila Moura (Org.). Primeiras cartas do Brasil [1551-1555]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

SACCONI, Luís Antônio. Dicionário de dúvidas, dificuldades e curiosidades da língua portuguesa. São Paulo: Harbra, 2005.

SQUARISI, Dad. Manual de redação e estilo. Brasília: Diários Associados, 2005.




domingo, 24 de janeiro de 2016

Uso de "presidenta" no século XIX é maior, mais polissêmico e mais antigo do que se supõe

Já tratamos da correção gramatical (isto é, do aspecto prescritivo, normativo) da palavra “presidenta” em artigo anterior deste blog – O sufixo proibido. Aqui neste artigo, fazemos somente um adendo de curiosidade sobre seus primórdios e usos.

Há quem enfatize, inclusive com o propósito de contribuir para desqualificar sua adequação e correção, o surgimento da palavra “presidenta”  com sentido exclusivamente jocoso (As Sabichonas, tradução de peça de Molière pelo escritor português António Feliciano de Castilho) em 1872: “Mais gratidão lhe devo, immortal presidenta” (p. 128); “À nossa presidenta, e às minhas sócias, peço se dignem perdoar-me o intempestivo excesso” (p. 153); “Nada, nada! Escusa, presidenta, de insistir mais” (p. 230). Diversos achados de princípios e meados do século XIX, no entanto, evidenciam que, ainda que de forma restrita, tanto portugueses quanto brasileiros já flexionavam presidente” no gênero feminino em jornais e obras literárias com os mais diversos usos além do meramente cômico — e bem antes de Castilho.

Registremos a seguir alguns exemplos.

Ao contrário do que frequentemente se supõe, o primeiro registro DICIONARIZADO não ocorre posteriormente por meio de Cândido de Figueiredo (1912), mas 100 anos antes, já em 1812, no Diccionario portatil portuguez-frances e francez-portuguez, de Domingos Borges de Barros, diplomata e senador brasileiro (p. 347):




Nessa mesma década, o jornal Gazeta de Lisboa registra, numa edição de 1818, uma corveta chamada “Presidenta




Historias de meninos para quem não for creança, de António Lobo de Barbosa Ferreira Teixeira (1835), faz menção a uma marquesa como “presidenta”:



Num contexto certamente menos sério, é usada em Motim literario em fórma de soliloquios, de José Agostinho de Macedo, tomo III (1841):



Uma edição de 1858 do Archivo pittoresco, jornal de Lisboa, chega a conter – entre notícias e contos – dez ocorrências da palavra; numa delas, com o sentido de cargo exercido por mulher:

“[...] entraram no novo mosteiro as religiosas [...] em solemne procissão, por meio das acclamações. Como presidenta ia a madre Maria Espírito Santo, filha de [...].” (p. 306)
... e, em outras, como mulher do presidente (no conto Ressuscitada por amor, como esposa do presidente do Parlamento de Paris):
“Sim, a presidenta de Boissieux é a mesma Clemência...” (p. 320)
“[...] em que viu celebrar os funeraes da presidenta [...].” (p. 326)
“[...] vigia cuidadosamente o túmulo da presidenta.” (p. 326)
“[...] pela exhumação se verificou que o corpo da presidenta não estava sepultado.” (p. 326)

... Tudo isso bem antes de escritores clássicos como Machado de Assis, Camilo Castelo Branco e Feliciano de Castilho registrarem o termo em suas obras.

Como já dissemos, a questão prescritiva, normativa já foi abordada em outro artigo deste blog (além de seu crescente uso no decorrer do século XX). No entanto, vale repetir e reforçar aqui que, quanto a considerá-la pejorativa, a normalização da palavra por vários gramáticos, como Rocha Lima (1959), Bechara (1963), Luft (1966), Cegalla (1996) Sacconi (2005) etc., são suficientes para evidenciar não apenas sua correção como também seu uso além do sentido exclusivamente pejorativo que ela possa ter apresentado no passado (que, como vimos aqui, nunca foi, de fato, o único sentido).

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Uma artificial distinção que passa des(a)percebida



Os homens são tão incapazes de intervir na marcha e nas formas
de um idioma como o são de modificar o matiz ou o contorno
 da folhagem de uma árvore depois de semeada.

(Histoire des révolutions du langage en France, Francis Wey, 1848)


Existe hoje um número tão grande de referências de peso condenando o uso de "desapercebido  como sinônimo de despercebido que talvez seja dispensável citá-las aqui: Cegalla (2010, p. 124), Sacconi (2005, p. 146), Napoleão (1981, p. 81), Kury (1983, p. 110) e outros gramáticos advertem que despercebido significa tão somente não notado, não percebido, ignorado, enquanto desapercebido só pode ser entendido como “desprovido, desguarnecido, desaparelhado, não abastecido” ou, ainda, “desprevenido”, “desacautelado” (estendendo o mesmo critério a seus antônimos, percebido e apercebido, bem como a seus verbos correspondentes, perceber e aperceber). Trata-se de um rigor para o qual, na prática, o português de todos os tempos sempre foi indiferente. Seria essa indiferença fruto dum vício de linguagem ou um uso culto e genuíno que, em algum momento do português, foi deslegitimado e desautorizado?


Esse questionamento é muito justo, porque clássicos e documentos oficiais em língua portuguesa de diversas épocas apresentam perceber, aperceber, desperceber e desaperceber e seus derivados como sinônimos (GRAÇA, 1904). Nenhum dicionário de língua portuguesa, até fins do século XIX, contrariava tal sinonímia, embora todos eles registrassem, também, as demais significações de ambos os termos. A primeiríssima edição do Dicionário de Caldas Aulete definia desapercebido tanto como “desprevenido” e “desacautelado” quanto o “que não foi visto ou notado: Este facto passou a todos desapercebido (AULETE, 1881, p. 475). Ou seja, isso era tão normal e comum que o gramático Júlio Nogueira observou o seguinte, logo após apresentar a alardeada diferenciação entre os dois vocábulos: É distincção util, mas de criação moderna. [o dicionarista António de] Moraes [Silva] não a consigna (NOGUEIRA, 1929, p. 34).



Primeiríssima edição do Dicionário Caldas Aulete (Lisboa, 1881)

Criação moderna, dizia o gramático nos anos 20. Quando e onde, então, essa sinonímia passou a ser condenada gramaticalmente? E – não menos importante – quem teria criado essa distinção?

Pois bem: tudo começou com um purista lusitano chamado António da Silva Tullio (1818-1884), cunhado do dicionarista português Júlio Caldas Aulete (sim, aquele que acabamos de citar) escritor, historiador e bibliotecário, o inventor da distinção entre despercebido e desapercebido (FIGUEIREDO, 1960, p. 226). Ele disseminou essa cagação de regra a partir dum artigo publicado em Estudinhos da lingua patria e numa edição de Archivo Pittoresco (vol. III, 1860):


É trivial ouvirmos e lermos em lettra redonda: Não passou desapercebida a sua observação, tal pessoa, objecto ou allusão. Fulano fez-se desapercebido, ou fiz-me desapercebido. N'estas, e em outras muitas phrases vulgares que ora nos não lembra, erra-se vergonhosamente a natureza do verbo desaperceber, e a sua regencia. Desaperceber, que ordinariamente se usa no particípio desapercebido, é verbo activo, e significa desapparelhar, desarmar, desprover, e também desavisar, desprevenir. Desperceber e despercebido, é não ter ou não ser percebido, não entender, não reparar. Já se vê que este verbo tem accepção e natureza mui diversa d'aquell'outro, e usa-lo pelo modo apontado nas locuções que acima transcrevemos, é barbarismo intolerável. Deve-se, pois, dizer: Não passou despercebida a sua allusão. Fulano fez-se despercebido, isto é, desentendido, etc. [...] Basta o pouco que fica dito, para que os escriptores principiantes evitem erro tão crasso... (TULLIO, 1860, p. 31).


Artigo a partir do qual o purista lusitano deu origem,
no português, à reprovação da sinonímia entre
desapercebido e despercebido
Conforme conta o filólogo Heráclito Graça (1837-1914), imortal da ABL, em Portugal muitos acharam procedente a engenhosa doutrina, e aqui no Brasil muita gente ilustrada louvou e encareceu a sutileza, como a expressão da verdade, reputando erro crasso atribuir a desapercebido significação idêntica a de despercebido, e tudo isso sem maior exame da matéria (GRAÇA, 1904). Um bom exemplo  é o purista-mor Rui Barbosa, que reclamava que muita gente de alto cothurno usa desapercebido no lugar de despercebido (BARBOSA, 1904).1

O filólogo brasileiro não parou por aí: fez exaustiva pesquisa documental e literária para escancarar a artificialidade dessa condenação, contestando devidamente a distinção profunda que ele [Silva Tullio] imaginou entre desapercebido e despercebido (1904, p. 188). Para começar, ele observa que Silva Tullio já se contradiz ao dar a desapercebido, além do sentido de desaparelhado, desprovido, desarmado, o de desavisado e desprevenido, que são sinônimos de desatento, inadvertido e distraído.
Em seguida, apresenta grande número de citações literárias que evidenciaram a contradição entre a regra inventada por Silva Tullio e a lição dos clássicos. Suas notáveis pesquisas (coligidas em obra que, originalmente, havia sido concebida para refutar os diversos rigores de outro lusitano, Cândido de Figueiredo, um dos maiores puristas da história da língua portuguesa) podem ser conferidas neste livro.

Outras raras observações como essa feita pelo filólogo da ABL (PINTO, 1924, p. 98-99; NOGUEIRA, 1929, p. 34) não tiveram vez na Belle Époque brasileira — que coincidiu com a era de ouro do purismo linguístico —, sendo sufocadas pela adesão generalizada a essa forçada diferenciação.

Hoje em dia, é uma [cagação de] regra presente em tantas obras de referência e em tantas listinhas de erros mais comuns da língua portuguesa que dificilmente uma pessoa culta questionaria ou contestaria o porquê da diferença de sentido  — se dicionários gerais, dicionários de sinônimos e outras obras de referência não dissessem o contrário.

É justo e forçoso destacar a honestidade e a nobreza daqueles que, educados por esse critério, redigiram criativos exemplos a fim de tentar demarcar uma sutil diferença2 entre as duas palavras:
[...] daqui para a frente o nosso prezado leitor não será mais pego desapercebido (desprevenido) em relação aos parônimos, assunto que até então talvez tenha lhe passado despercebido (não notado) (CARVALHO, 2004, p. 155).

Todavia, na prática, a teoria é outra. A distinção pretendida pelo autor supracitado é tão artificial que, na prática, pouca gente a faz:

desapercebido é adjetivo pouco usado no sentido próprio, mas muito utilizado como sinônimo de despercebido, razão pela qual os dicionários registram a sinonímia, alegando também o fato de terem encontrado esse emprego pouco "puro" em bons autores do século XX (PIACENTINI, 2012, p. 119).

A assertiva acima é reforçada pelo Guia de uso do português, no qual a linguista Maria Helena de Moura Neves apresenta os resultados de minuciosa pesquisa em um corpus de mais de 80 milhões de ocorrências. No verbete desapercebido, é informado que tal termo, na acepção de desprevenido ou desacautelado, não foi encontrado nenhuma vez [nesse corpus]; apenas ocorreu confundido com despercebido (NEVES, 2003, p. 252).3  Fica claro, ao se ler confundido, que a língua culta (vale observar que esse corpus abrange textos dos tipos romanesco, oratório, técnico-científico, jornalístico e dramático) não vê a menor diferença nisso...

Obviamente, há quem proceda de acordo com a forma oficial (e artificial) por força da norma. Ainda assim, isso não se dá de modo espontâneo e tampouco generalizado, conforme vimos no parágrafo anterior. Ainda mais se considerarmos o outro sentido dado a desapercebido: o de desprovido, desguarnecido, desaparelhado, não abastecido, que talvez possamos já considerar em total desuso:

Os exemplos que aparecem, de desapercebido com o velho sentido, acham-se em escritores apegados a velharias ou em escritores que procuram escrever difícil, para impressionar. Não se pode hoje [ele estava dizendo isso em plenos anos 50] negar à língua o direitto de introduzir as modificações fonéticas, semânticas ou de outra natureza, que sejam adequadas à sua melhor expressividade (NASCENTES, 1957, p. 175).


autor supracitado é outro grande filólogo que investigou o caso: Antenor Nascentes (1886-1972). Vale observar aqui que, inicialmente, ele reproduzia a mesma prescrição de seus colegas e contemporâneos: "Não confundir despercebido com desapercebido" (NASCENTES, 1941, p. 53)4. Todavia, na década seguinte, com o lançamento do magnífico Dicionário de sinônimos (um dos melhores, se não o melhor dicionário de sinônimos da língua portuguesa, que não só registra os termos, mas os define, apontando diferenças, sutilezas e até exemplificando-os), ele contesta essa "confusão" e explica a razão da sinonímia, apresentando abordagem diferente à de Heráclito Graça:
Desapercebido significou desprovido, desaparelhado (do necessário). Despercebido significa não percebido. Aconteceu que, por influência do francês (queira-se ou não, o francês influiu), o verbo aperceber-se, que significa prover, aparelhar, arcaizou-se neste sentido e passou a viver com o significado de perceber pelo sentido da vista e transmitiu este novo significado ao seu antônimo. Assim desapercebido passou a significar, do mesmo modo que despercebido, o que não é notado. Talvez tenha concorrido para isso a sua estrutura, onde o prefixo a, quebrando a relativa aspereza do grupo sp, concorreu para melhor constituição das sílabas (NASCENTES, 1957, p. 217).


Toda essa realidade vai, obviamente, refletir-se sobre a lexicografia. Embora seja possível identificar um quase consenso entre as principais autoridades da norma-padrão sobre a diferença entre esses parônimos, a maioria dos dicionários, baseado na língua de fato e na literatura, sempre ignorou isso. É o Dicionário da própria Academia Brasileira de Letras (!) que registra, sem rodeios:

desapercebido adj. 1. Que não foi notado; despercebido: O fato passou desapercebido (a todos). 2. Desprovido (do necessário): O hospital está desapercebido de medicamentos (ABL, 2o08, p. 407).

Já o Houaiss, além de também dar tais palavras como sinônimas, sentencia:

Os parônimos desapercebido e despercebido foram objeto de censura purista, acoimados de falsa sinonímia, em que o contraste entre aperceber 'aparelhar' e perceber 'notar, observar', prefixados com des- (negativo, privativo), era transferido para os seus derivados; no entanto, ante o emprego desses dois vocábulos como sinônimos por autores de grande expressão quer no século XIX como em inícios do século XX, como Castilho, Camilo, Rebelo da Silva, Garcia Redondo etc., a rejeição faz-se inaceitável (HOUAISS, 2001, p. 955).

E o Aurélio não fica atrás. No verbete aperceber, enfatiza sua sinonímia com perceber e ainda dá uma esculachada em quem condena isso:

É excelente – e não condenável, como querem puristas maníacos – o uso de aperceber nas acepções de notar, ver, distinguir, perceber (FERREIRA, 1975, p. 114). 

O tradicional Dicionário de sinônimos e antônimos de Francisco Fernandes registra desapercebido e despercebido como sinônimos (FERNANDES, 2008, p. 279). E. ainda que indiretamente, seDicionário de regimes de substantivos e adjetivos legitima isso com abonação em clássico da literatura:

desapercebido – para: "Os amôres de Corday com o marquês tinham passado desapercebidos para a sociedade de Caen (Camilo Castelo Branco, Livro Negro de Padre Dinis, 52) (FERNANDES, 1971, p. 129).

Vários dicionários de sinônimos do português dão despercebido = desapercebido, como o Dicionário de sinônimos e antônimos (MORAIS; PENA, 1969, p. 135). O lusitano Dicionário de sinónimos da língua portuguesa registra desperceber = desaperceber (MELO, 1949, p. 306).  Já outros que também não apresentam tais termos como sinônimos acabam estabelecendo, ainda que indiretamente, a sinonímia. O antigo Dicionário de antônimos e sinônimos da língua portuguesa do MEC diz que despercebido significa "desatento, desprevenido, desacautelado" (SCHWAB, 1974, p. 340) e que desapercebido é "desprevenido, desacautelado, descuidado" (SCHWAB, 1974, p. 286)... Ou seja, são a mesma coisa.

O já citado Celso Luft não tem um dicionário de sinônimos, mas, em seu Dicionário Prático de Regência Nominal, registra uma forma como variante da outra:
desapercebido (variante de despercebido, v.) a (ou, menos us., para), de: Algo (que passa) desapercebido a (ou de) alguém. Essa passagem reveladora... parecer ter passado desapercebida completamente a todos os que se ocuparam dessa ficção [O mistério da Tijuca, de Aluísio Azevedo] (LUFT, 2010, p. 155).
despercebido (ou desapercebido, v.) a (ou, menos usado, para), de: Fato despercebido a (ou de) alguém. [...] de: Despercebido [desprevenido; desatento] de algo. [...] Surpreenderam os holandeses, despercebidos da conspiração (Pedro Calmon: Cruz) (LUFT, 2010, p. 167).

É também este autor que, entre os gramáticos, demonstra ser um dos poucos dispostos a peitar a cagação de regra oitocentista. Para ele, o significado de despercebido como desatento, desacautelado foi o que abriu porta para a variância com desapercebido, que é muito usual como 'não percebido, não notado' – ou seja, variante mórfica de despercebido (LUFT, 2010, p. 114 e 118).

Soma-se a Luft o gramático Júlio Nogueira,  que nos anos 50 observava, após relatar todo o esclarecimento feito por Graça, que, apesar disso, a diferença vem sendo disciplinarmente respeitada. Êrro, porém, não há. Pode-se dizer: passou desapercebido ou despercebido. E kif kif, com dizem os árabes” (NOGUEIRA, 1956, p. 36).

Após todos esses lúcidos pareceres, é lamentável notar que eles estejam devidamente ofuscados pela massa de gramáticos — e dicionaristas também — que reproduzem a invencionice de um purista cretino do século XIX. Tal conflito entre o uso e a norma não passou des(a)percebida nem mesmo do professor Pasquale, que, em artigo publicado na Folha de S. Paulo nos anos 90, observou:
Se uma pessoa passa e ninguém nota, ninguém vê, essa pessoa passa “despercebida" ou “desapercebida”. Sim, de acordo com os dicionários, pode-se usar uma ou outra. O mais interessante – e preocupante – é que nos vestibulares não se costuma aceitar “desapercebido” nesse tipo de frase, o que no fundo é mera idiossincrasia (CIPRO NETO, 1998).

Como se vê, prevalece na sociedade a visão utilitarista da língua: Manda quem prescreve; obedece quem quer passar em concurso. O concurseiro e o vestibulando precisam obedecer aos arautos da norma-padrão para garantir sua aprovação; o revisor de texto poderá ter sua competência questionada se não atentar para essa distinção em suas correções. Todavia, parece inútil tentar policiar e contrariar a sinonímia, já que a própria língua não faz nenhum esforço em atentar para a artificial distinção que acaba passando des(a)percebida.




1 Influenciou também, como era de se esperar, vários dicionários de sinônimos, sendo digno de nota o de Rocha Pombo: “Quando se diz que uma pessoa está desapercebida, enuncia-se a idéa de que essa pessoa não se apercebe, não dá pelo que aparece, pelo que se diz, ou pelo que se passa em torno. Significa ainda, além de desatento, como abstrato ou inconsciente – desprevenido, desacautelado. – Despercebido quer dizer – 'que não é visto, que não chama atenção, que passa como ignorado, como não pressentido'.” (POMBO, 1914, p. 431).

2  A prova do quão artificial é a tentativa de estabelecer uma sutil diferença entre os dois termos pode ser vista no Dicionário de erros correntes da língua portuguesaDespercebido significa desatento; desapercebido significa desprevenido (MEDEIROS; GOBBES, 1991, p. 61). Ora, todos os demais autores que prescrevem essa distinção (como Rocha Pombo) dizem que desatento significa desapercebido, e não despercebido. Algo parecido ocorre em Schwab (1974, p. 286 e 340), autor do antigo dicionário do MEC, conforme vimos acima.

3 Cumpre observar que, apesar do que a autora informa, ela não endossa desapercebido como sinônimo de despercebido, descrevendo tal caso como "emprego que não tem aceitação [normativa] (NEVES, 2003, p. 252). 

4 Todavia, talvez nunca tenha concordado, nem mesmo antes, já que diz em seu prefácio: Embora não concorde com todas as pequeneses inventadas pelos puristas, exponho-as para livrar o candidato [o aluno] de incorrer na pecha de ignorá-las. Conforme bem observou Marli Quadros Leite em Metalinguagem e discurso: a configuração do purismo brasileiroRegistre-se que, como vigorava o império da norma clássica, mesmo autores que não tinham índole purista, como Antenor Nascentes, publicou obra com tal característica, intitulada Dicionário de dúvidas e dificuldades do idioma nacional(LEITE, 2006, p. 133).


REFERÊNCIAS


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CARVALHO, Castelar de. Parônimos. In: BECHARA, Evanildo; RODRIGUES, Antônio Basílio; FREITAS, Horácio Rolim de. Na ponta da língua. v. 6. Rio de Janeiro: Lucerna; Liceu Literário Português, 2004.

CIPRO NETO, Pasquale. A tapa e o desapercebido. Folha de S. Paulo, São Paulo, 6 ago. 1998. Inculta & Bela. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff06089817.htm>. Acesso em 3 nov. 2015.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.

HOUAISS, Antônio. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

LUFT, Celso Pedro. ABC da língua culta. São Paulo: Globo, 2010.

______. Dicionário prático de regência nominal. 5. ed. São Paulo: Ática, 2010.

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FIGUEIREDO, Antônio Joaquim de. Aspectos da vida e do estilo de Clóvis Beviláqua. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960.

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KURY, Adriano da Gama. 1000 perguntas: português. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1983.

MEDEIROS, João Bosco; GOBBES, Adilson. Dicionário de erros correntes da língua portuguesa. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1999.

MELO, Alfredo Leite Pereira. Dicionário de sinónimos da língua portuguesa. Lisboa: Tertúlia Edípica, 1949.

MORAIS, Orlando Mendes; PENA, Leonam de Azeredo. Dicionário de sinônimos e antônimos. v. 1. 8. ed. Rio de Janeiro: Spiker, 1969.

NASCENTES, Antenor. Dicionário de dúvidas e dificuldades do idioma nacional. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941.

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______. Indicações de linguagem: resposta a várias consultas e lições práticas para o bom uso da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1956.

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POMBO,  José Francisco da Rocha. Dicionario de sinonimos da lingua portuguesa. Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia., 1914.

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