domingo, 6 de março de 2016

"Através de" com sentido de "por meio de": o erro não está no uso, e sim no abuso


Existe uma paranoia logicista que assombra de modo tão implacável aqueles que buscam a correção gramatical que acaba por torná-los mais rigorosos e conservadores do que os próprios gramáticos. A meu ver, parte da responsabilidade por essa obsessão pode ser atribuída, hoje, a manuais de redação e estilo. Estes, criados para padronizar e adequar a linguagem dos jornais, são vendidos como legítimos e completos substitutos de gramáticas, e várias opções de uso linguístico que neles são selecionadas e padronizadas (para os respectivos jornais) acabam sendo obedecidas e praticadas como regra generalizada para todo e qualquer texto em português. É neles que encontramos a seguinte cagação de regra:
A locução, no seu sentido correto, equivale a por dentro de, de um lado a outro, ao longo de: Cavalgou através de prados e florestas. / Viajou através de todo o país. / Olhava através da janela. / Foi sempre o mesmo homem honesto através de anos e anos. 3 — Por isso não use através de como por meio de, por intermédio de ou por simplesmente, preferindo uma dessas formas: Soube da notícia pelo (e não “através do”) rádio, pela imprensa, pela televisão
(Manual de Redação e Estilo de O Estado de S. Paulo, Eduardo Martins, 1997)
A locução através de pertence à família do verbo atravessar. Deve, portanto, ser empregada no sentido de passar de um lado a outro, ou passar ao longo de: Vejo o jardim através da janela (meu olhar atravessa a janela e chega ao jardim). O conceito de beleza mudou através dos tempos (ao longo do tempo, o belo foi adquirindo significados diferentes). Evite usar através de em lugar de mediante, por meio de, por intermédio de, graças a ou da preposição por: Falei com ele pelo telefone. O acerto será feito mediante acordo de líderes. A notícia chegou por intermédio dos familiares da vítima
(Manual de redação e estilo, Dad Squarisi, 2005)
Além disso, nota-se que os manuais de português jurídico (COSTA, 2007; KASPARY, 2015; PAIVA, 2014) apresentam em geral a mesma restrição. É também prática comum no meio editorial substituir os empregos metafóricos dessa locução prepositiva, sendo raro encontrar revisores de texto que não corrijam tais ocorrências.

Se, por uma questão de estilo, preferência, concisão etc., jornalistas, juristas ou quaisquer outros usuários da língua preferirem evitar tal emprego, não há problema algum nisso.O problema é condenar sumariamente através de com o sentido figurado, metafórico que existe desde que o português é português e não foi inventado em nenhuma variante popular da língua. Numa carta do século XVI, um jesuíta diz:
Por algumas cartas que vos escrevemos no passado ano de 1550, demo-vos ampla informação destas partes do Brasil e de algumas coisas que Nosso Senhor quis obrar através de seus servos [...] das coisas que o Senhor opera através de cada um (PIRES, Antônio. Uma enviada da capitania de Pernambuco, 1551).

Nossos maiores clássicos, como Machado de Assis, sempre usaram:

Ele creu que era assim, mas receou também que não fosse assim; faltava-lhe o trato suficiente das mulheres para ler através de uma negativa (Dona Benedita: um retrato, Machado de Assis).
Creio que terão entendido isso mesmo, através da forma alegórica (Verba testamentária, Machado de Assis).

Diante disso, o sabichão purista, o professor chato e o revisor quadrado vão dizer: “Ah, mas esses exemplos são desvios eventuais e subjetivos; não são suficientes para servirem como exemplo de norma culta”. OK. Então, com a palavra, os gramáticos:
Antigamente, usava-se ‘através de’ apenas em casos que evidenciassem passagem de algo de um lado para o outro [...]. No português contemporâneo, tal exigência carece de sentido. Os puristas, todavia, só aceitam construções assim: Ouvi a música pelo rádio. É mediante os jornais que se toma conhecimento dos fatos. O cheque foi liquidado pelo médico do clube (SACCONI, 2005, p. 66). 
 Através de. Está generalizado o emprego desta locução no sentido de ‘por meio de’, ‘por intermédio de’. Por isso, não há senão legitimá-lo: Soube da notícia através da imprensa. / Conseguiu emprego através de um amigo influente (CEGALLA, 2009, p. 60).
Através de pode equivaler [...] em sentido translato ou figurado, a mediante, por meio de (Disse-lhe através de um amigo comum). Nesta última acepção, é impugnado por puristas, mas sem razão: é de largo uso entre os melhores escritores (NOUGUÉ, 2015, p. 384).

Raparem que nem mesmo Napoleão, mais conservador, condena tal sentido:

Não se deve cair no exagero de julgar que a locução só é possível quando significa de um lado para o outrode lado a lado (Passou através da multidão – Passou a espada através do corpo). Não vemos erro emA palavra veio-nos através do francês, como não vemos na passagem de Herculano: Através desses lábios inocentes murmuram durante alguns instantes as orações submissas (ALMEIDA, 1981, p. 33).

Ele só faz restrição quanto ao emprego da locução no agente da passiva (algo que Sacconi não faz):
O agente da passiva, em português, expressa-se pela presença de por e às vezes de: O livro é estudado por todos – Ele é estimado de todos. O gol foi marcado por tal jogador – A falta foi cobrado pelo jogador tal – O cheque foi enviado por tal banco – O assunto foi resolvido por tal decreto. Nem através de” nem por intermédio de” no agente da passiva (ALMEIDA, 1981, p. 33).3
Já o parecer de Bechara nos permite entender que o uso ou não da locução também é uma questão estilística, não de (in)correção:
O estilo moderno, ou por imitação do inglês ou por tornar mais concreto o significado de uma preposição, usa e abusa de sua substituição por uma locução prepositiva: à vista de (por ante), a bordo de (por em), de acordo com (por segundo), em torno de (por sobre), através de (por mediante), etc. (BECHARA, 2010, p. 694, grifo nosso).
Tal citação nos ajuda a entender a opção, num texto jornalístico (ou qualquer outro texto com necessidade de concisão, de economias de palavras), por formas vocabulares menores, curtas, mais compactas (havendo, portanto, razão para correção). No entanto, por que estender esse mesmíssimo critério a todo e qualquer texto (como o literário, o dissertativo etc.), adotando-o como norma universal e irrestrita? Eis uma das razões pelas quais as restritivas e filtrantes regras de manuais de redação nem sempre servem para tudo e para todos...

Vale observar que — ao contrário dos gramáticos supracitados — Bechara tem reservas quanto ao uso da locução: A rigor soa sem sentido dizer: Através do advogado requereu sua absolvição” (2010, p. 694); todavia, isso nunca o impediu de fazer largo uso dela com o sentido metafórico em seus textos:

[...] potencialidade para encontrar, através do trabalho de seus escritores, novos recursos [...] (BECHARA,  2000,  p. 120).
Em português, como em muitas outras línguas, nota-se uma tendência para evitar o hiato, através da ditongação ou da crase (BECHARA, 2009). 
O sossego do vento ou o barulho ensurdecedor do mar ganham maior vivacidade através da aliteração dos seguintes versos [...] (BECHARA, 2009).
[...] não vamos ao grego para formar palavras novas; elas nos vêm do estrangeiro, mormente de França, e agora dos países de língua inglesa, através da nomenclatura científica comum à maioria das nações cultas (BECHARA, 2009)
O fato é que mesmo os gramáticos que não abordam diretamente o fato linguístico acabam por aboná-lo por meio de textos de sua própria autoria:
-im é importação do francês -in, ou do italiano -ino, através da forma francesa (CUNHA; CINTRA, 2001, p. 91). 
O substantivo “lágrimas” relaciona-se com o adjetivo “rasos” através da preposição de (CUNHA; CINTRA, 2001, p. 138).
A antropofagia expressou-se, em literatura, especialmente através de alguns livros de Oswald de Andrade e Alcântara Machado (LUFT, Celso. 1979, p. 26).
O gramático Rocha Lima publicou em 1949 o livro Através da Oração aos Moços. O filólogo Mário Barreto escreveu uma obra chamada Através do dicionário e da gramática.  Os mais prestigiados dicionários do português (Aurélio, Houaiss etc.) e até mesmo o da Academia Brasileira de Letras registram. Especialistas e profissionais da área (PIACENTINI, 2013; MEDEIROS; GOBBES, 1995) reconhecem não haver razão para substituir a locução prepositiva. 

Como acabamos de mostrar, a condenada locução faz parte do estilo de escrita de vários de nossos principais gramáticos!

Todavia, isso não significa que, nesse círculo de autores, não exista uma linha dura quanto à questão: Amini Hauy, em sua mais recente obra, Gramática da língua portuguesa padrão (2014, p. 774), é inflexível e taxativa: “Não tendo o sentido de transpassagem, substitui-se [através de] por outra locução prepositiva: por intermédio de, por meio de ou por um preposição: mediante, com ou por”.  Intolerância igual só encontrei em Gama Kury (1983, p. 111-112). Há pelo menos um filólogo implacável em relação ao caso: o purista Gladstone Chaves de Melo, que trata o caso como “destempero que se vai tornando regra (melhor, desregra)” (2000, p. 13). 

De qualquer forma, a abonação do através de não significa reconhecer que ele não possa nem deva ser substituído, e com muita vantagem, por formas equivalentes, como um simples “por, dependendo do contexto. O problema, em vários casos, não está no uso, e sim no abuso que se faz da locução. É notório, principalmente entre autores com repertório vocabular limitado, o uso excessivo dessa expressão, a ponto de até mesmo linguistas recomendarem moderação por uma questão de estilo:

[...] usar repetidamente a locução quando, muitas vezes, uma preposição simples dava conta do recado, é algo que podemos evitar — e isso não é um “erro de português”, no sentido tradicional, mas uma questão de efeito estilístico, de produção textual. Assim, em vez de dizer que “este tratamento é feito através de antibióticos”, podemos escrever simplesmente “com antibióticos”; em vez de “o problema se resolve através do emprego da ferramenta adequada”, podemos escrever simplesmente “pelo emprego da ferramenta adequada”. Aqui, a questão não é de “gramatical”, mas de recurso excessivo a determinadas formas linguísticas que se transformam em “muletas” na hora de escrever [...] (BAGNO, 2009, p. 86).
É claro que as recomendações dos manuais de redação solicitando substituição de “através de continuam servindo perfeitamente para os jornais, se tais órgãos assim preferem; e para as editoras, pela mesma razão. Digno de nota é o critério do Manual de Redação da Folha de S. Paulo — o manual jornalístico que mais evoluiu linguisticamente, consciente das variações e sintonizado com a língua em uso:2
Segundo os dicionários, o primeiro significado de através é físico ou temporal [...]. Também se registra o emprego de através com o sentido de por intermédio de: Conseguiu a vaga através de um amigo (FOLHA, 2011, p. 126). 
Não deixa de prescrever, porém, a mesma restrição feita por Napoleão:
Não introduza o agente da passiva com através de: A revelação foi feita através de um assessor do presidente. O time venceu com um gol marcado através de fulano (FOLHA, 2011, 126).
No fim das contas, sugere a alternativa já recomendada outros autores supracitados, sem rigor:
Para evitar problemas, muitas vezes é possível substituir através de por um simples por (FOLHA, 2011, 126).
Vale observar que, na condição de revisor colaborador de editoras, devo atentar para os critérios de correção por elas estabelecidos. Não deixo jamais de fazer tal substituição se assim a editora determinar. Todavia, já está mais do que na hora de as editoras revisarem tais critérios a fim de respeitar o estilo de boa parte dos autores contemporâneos. A não ser que desejemos ser mais rigorosos e conservadores do que os próprios gramáticos — o que não faz sentido algum.

Assim, podemos concluir que, apesar da proibição imposta por guias jornalísticos, jurídicos e editoriais, o erro não está no uso metafórico de “através de”, e sim no abuso ou na aplicação inadequada da locução em certos contextos.


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1 O curioso é que a maioria dos profissionais desses jornais (para não dizer todos!) ignora tal prescrição (Você duvida? Consulte a ferramenta de busca dos sites...), reforçando ainda mais a inutilidade de tentar barrar um uso consagrado (e correto).

Isso pode ser explicado pelo fato de que o conteúdo gramatical da última edição do manual ter sido confiado a Pasquale Cipro Neto, muito criticado por linguistas no passado, mas cuja visão de língua evoluiu consideravelmente com o passar dos anos.




REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Dicionário de questões vernáculas. São Paulo: Caminho Suave, 1981.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Contos. Organização, revisão de texto e notas por Massaud Moisés. São Paulo: Cultrix, 1961. p. 27 e 78.

BAGNO, Marcos. Não é errado falar assim: em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

BECHARA, Evanildo. Gramática escolar da língua portuguesa. 10. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.

______. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2009.

______. Sesquicentenário de um grande mestre. In: ELIA, Sílvio et al. (Org.) Na ponta da língua. v. 1. Rio de Janeiro: Lucerna, 2000.

CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de dificuldades da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2009.

COSTA, José Maria da. Manual de redação profissional. 3. ed. São Paulo: Millenium, 2009.

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

ROCHA, Carlos Alberto de Macedo; ROCHA; Carlos Eduardo Penna de M. Dicionário de locuções e expressões da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2011.

FOLHA DE S. PAULO. Manual da redação. 17. ed. São Paulo: Publifolha, 2011.

HAUY, Amini Boainin. Gramática da língua portuguesa padrão. São Paulo: Edusp, 2014.

KASPARY, Adalberto J. Habeas verba: português para juristas. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

LUFT, Celso Pedro. Literatura portuguesa e brasileira. Porto Alegre: Globo, 1979.

MACHADO, Josué. Manual da falta de estilo. 2. ed. São Paulo: Editora Best Seller, 1994. p. 60.


MARTINS FILHO, Eduardo Lopes. Manual de redação e estilo. 3. ed. São Paulo: O Estado de S. Paulo, 1997.

MEDEIROS, João Bosco; GOBBES, Adilson. Erros correntes da língua portuguesa. São Paulo: Atlas, 1995.

MELO, Gladstone Chaves de. Ainda agressões ao vernáculo. In: ELIA, Sílvio et al. (Org.). Na ponta da língua. v. 1. Rio de Janeiro: Lucerna, 2000.

NOUGUÉ, Carlos. Suma gramatical da língua portuguesa. Gramática geral e avançada. São Paulo: É-Realizações, 2015.


PAIVA, Marcelo. Português jurídico. Brasília: Leya, 2014.

PIACENTINI, Maria Teresa de Queiroz. Não tropece na língua: lições e curiosidades do português brasileiro. Curitiba: Bonjuris, 2012.

PIRES, Antônio. Uma enviada da capitania de Pernambuco, 1551. In: HUE, Sheila Moura (Org.). Primeiras cartas do Brasil [1551-1555]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

SACCONI, Luís Antônio. Dicionário de dúvidas, dificuldades e curiosidades da língua portuguesa. São Paulo: Harbra, 2005.

SQUARISI, Dad. Manual de redação e estilo. Brasília: Diários Associados, 2005.




4 comentários:

  1. Achei ótima a tua abordagem, Davi! E que pesquisa minuciosa! Abraço da
    Maria Tereza Piacentini

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  2. Melhor, impossível. Esclarece, compara, reflete, lista exemplos e contradições. Mas no fim de tudo, ressalta que é uma questão estilística. Como diz um amigo meu, é uma questão de estilo (ou falta de...). Prefiro evitar sempre, no meu próprio texto. Geralmente me soa meio pedante, meio pomposa, fora de época. Se o simples "por" geralmente dá conta, pra que se embolar no pomposo? Silvana Seffrin

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