— Daqui vocês não me tiram — respondeu-lhes a bomba. — O primeiro que me tocar, eu explodo. Talvez este tempo de verbo não exista, mas pouco estou ligando à gramática de vocês. À gramática e ao resto. Estou farta! Farta! (trecho de A Fugitiva, crônica de Carlos Drummond de Andrade)
Conjugação verbal às vezes é um inferno. Dependendo do verbo em questão, pode-se ficar em dúvida sobre tempos e pessoas verbais nos quais ele pode ser conjugado. O problema se torna maior quando existem divergências entre o que já é usual na língua e o que é normatizado.
Vejamos o caso do verbo 'explodir': tradicionalmente, é considerado defectivo, isto é, um verbo que não apresenta todas as formas do paradigma a que pertence (como abolir, adequar, banir, demolir, doer, falir, reaver, colorir, ruir, exaurir, extorquir etc). Entretanto, quem consulta as obras lexicográficas mais conhecidas do português brasileiro pode assimilar outro entendimento.
Comecemos pelo Houaiss. Em sua versão eletrônica, ele informa que explodir é regular e apresenta a sua conjugação em TODOS os tempos e pessoas verbais:
Ferramenta de conjugação de verbos da versão eletrônica do Dicionário Houaiss (2009) |
Conjugação do verbo
explodir na versão
eletrônica do dicionário
Aurélio (2009)
|
No verbete explodir, entretanto, consta a seguinte nota: "Geralmente considerado defectivo, não teria as formas em que ao 'd' da raiz se segue 'a' ou 'o' (1ª pessoa do singular do presente do indicativo, todo o presente do subjuntivo, imperativo afirmativo, com exceção da 2ª pessoa do plural, e o imperativo negativo)". Além disso, informa o seguinte, dentro da própria janela da ferramenta que conjuga o verbo: "[...] tem sido usado com conjugação completa, ocorrendo também a forma 'expludo' para a 1ª pessoa do singular e, portanto, para o presente do subjuntivo" (grifo nosso)¹.
O 'rival' Aurélio faz quase a mesma coisa em sua versão eletrônica, conjugando explodir em todos os tempos e pessoas (conforme imagem ao lado). Entretanto, contrariamente ao que apresenta, afirma que tal verbo é "defectivo, não conjugável na 1ª pessoa do singular do presente do indicativo, nem, portanto, no presente do subjuntivo". Se considerarmos apenas esta nota e não as conjugações exibidas, notamos uma divergência em relação ao Houaiss (que afirma que a tal defectividade se estenderia aos imperativos afirmativo e negativo).
Em sua versão eletrônica (não a versão on-line), o Aulete não conjuga o verbo na 1ª pessoa do presente do indicativo e em nenhuma pessoa do presente do subjuntivo, mas informa que "na língua corrente, tanto falada quanto escrita, já é comum o emprego da 1ª pessoa singular do presente do indicativo explodo [ô], e das formas do presente do subjuntivo exploda [ô], explodas [ô] etc" (grifo nosso).
No âmbito lexicográfico², percebemos que os dicionários reconhecem (e registram) esses usos. Do ponto de vista normativo, porém, a coisa muda de figura: de acordo com Napoleão Mendes de Almeida,
certos verbos da terceira conjugação, como polir, colorir e outros, só se conjugam nas formas em cuja desinência existe i. Nas formas em que o paradigma partir não tiver i (o que se dá nas três pessoas do singular e na 3ª pessoa do presente do indicativo, no singular do imperativo e no presente do subjuntivo), tais verbos não poderão ser conjugados (ALMEIDA, 1981, p. 6).
O autor observa ainda que, desses verbos, há alguns que "toleram as flexões e e em: bane, brande, explode, carpe, discerne, explode, freme, gane, haure, late, mune". Apesar disso, o gramático oferece uma alternativa para a defectividade, informando que
quando necessário, recorre-se, para preencher as falhas de conjugação, ou a um verbo sinônimo ou ao auxílio de outro verbo que, sem prejuízo para a significação, proporciona a flexão em i: estou polindo, sei colorir, não vou extorquir, não podes abolir, ele se põe a vagir (ALMEIDA, 1981, p. 6).
Domingos Paschoal Cegalla pensa de modo semelhante: "[o verbo explodir] só tem as formas em que ao d se seguem e ou i: explode, explodiu, etc". Para as formas não existentes, ou melhor, não previstas pela gramática normativa, dá alternativa diferente de Napoleão: "suprem-se as formas defectivas com o verbo estourar". Entretanto, reconhece que "escritores modernos têm usado as formas explodo, exploda" (CEGALLA, 2009, p. 167).
Celso Pedro Luft apresenta a mesma restrição:
não se emprega na 1ª pessoa do singular do presente do indicativo e em todo o presente do indicativo, embora haja quem defenda essas formas (expludo, expluda[s], expludamos, expludam, explode[s], explodimos, explodem, explodia,...; explodi,...; etc) (LUFT, 2010, p. 161, grifo nosso).
Luiz Antonio Sacconi, em seu Dicionário de Dúvidas, Dificuldades e Curiosidades da Língua Portuguesa, também condena a conjugação do verbo na 1ª pessoa do presente do indicativo e em todo o presente do subjuntivo – embora admita as formas expludo, expluda – e, tal como Cegalla, sugere como alternativa o uso do verbo estourar:
Embora a gramática tradicional estabeleça essa regra, a língua cotidiana tem consagrado este verbo na sua conjugação completa, usando expludo como a primeira pessoa do singular do presente do indicativo, tendo cobrir por paradigma. São, portanto, equivocadas a forma "explodo" e as supostas derivações "exploda", "explodas", etc. Assim, podemos até admitir: Quero que ela expluda. Mas não: Quero que ela "exploda". Eu expludo de raiva, quando isso acontece. E não: Eu "explodo" de raiva, quando isso acontece. O melhor mesmo, todavia, é substituir as formas deste verbo, condenadas pela gramática, pelas correspondentes de estourar (SACCONI, 2005, p. 192).
As citações dos gramáticos acima já devem ser suficientes para identificarmos certo consenso normalizador em torno da condição defectiva do verbo explodir. Todavia, elas se mostram notavelmente conflitantes com o que se vê, na prática, no âmbito da linguagem culta. Isso nos leva a questionar: qual é a lógica da defectividade de um verbo? Ora, ela não é necessariamente inerente à própria natureza verbal original, mas deve se desenvolver de acordo com um uso que, consolidado, abranja ou não todas as pessoas e tempos possíveis. Poderiam esses usos verbais se estabilizarem de tal forma num dado momento histórico da linguagem culta a ponto de impedir que o verbo, originalmente defectivo, evoluísse para outra condição? O que de fato faz o verbo explodir continuar a ser defectivo? A norma ou o uso? Em seu Breviário da Conjugação de Verbos da Língua Portuguesa, Otelo Reis declara que
foi o uso que não consagrou certas formas, as quais, nunca tendo sido vistas ou ouvidas, são espontaneamente evitadas pelos que procuram falar corretamente. Em outros, é a eufonia que faz omitir algumas desagradáveis ao ouvido, ou geradoras de equívocos. Em outros, ainda, a defectibilidade resulta de ser impossível conceber-se, aplicada a certas pessoas, ou em certos tempos, a ideia expressa pelo verbo (REIS, 1971, p. 13-14).
Podemos concordar pelo menos em parte com esta citação. Existem, é claro, casos em que a defectividade depende da natureza peculiar do verbo. Cada caso é um caso. O que não podemos admitir é que, em relação a determinados verbos (como explodir), essa consagração fique reservada exclusivamente ao passado da língua: ao entendermos que "foi o uso que não consagrou certas formas", devemos levar tal lógica adiante e também admitir que é o uso que continua, ainda hoje, a consagrar ou não certas formas, e que continuará a fazê-lo no futuro.
Assim, se Sacconi diz que "a língua cotidiana tem consagrado este verbo na sua conjugação completa", se Cegalla reconhece que "escritores modernos têm usado as formas explodo, exploda" e se Luft admite haver "quem defenda essas formas", se os dicionaristas registram esses usos, não vemos por que realmente manter a condenação no âmbito da prescrição gramatical.
Um argumento fulminante a favor deste nosso pensamento pode ser fundamentado a partir de duas citações: primeiramente, o comentário de Evanildo Bechara, o maior gramático brasileiro vivo (que concorda com os colegas supracitados quanto a essa questão):
Muitos verbos apontados outrora como defectivos são hoje conjugados integralmente: agir, advir, compelir, desmedir-se, discernir, embair, emergir, imergir, fruir, polir, prazer, submergir. Ressarcir e refulgir (que alguns gramáticos só mandam conjugar nas formas em que o radical é seguido de e ou i) tendem a ser empregados como verbos completos (BECHARA, 2009, grifo nosso).
E, finalmente, a afirmação impecável do filólogo Mário Barreto:
Talvez não seja preciso dizer mais nada, não é mesmo?
Para arrematar, deixemos claro que as condenadas conjugações não são, de maneira nenhuma, exclusividade do uso coloquial, mas próprias da língua escrita culta. Em seu Guia de Uso do Português, a linguista Maria Helena de Moura Neves reconhece a existência desses usos condenados "nas lições tradicionais" (NEVES, 2003, p. 329) e fornece exemplos retirados de A História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman ("Mesmo que uma revolução exploda em circunstâncias que não parecem tão complicadas..."), e de uma edição da Folha de S. Paulo ("E o futuro e o país que explodam"). Temos até mesmo o amparo do filólogo português Rodrigo de Sá Nogueira, que diz o seguinte, em seu Dicionário de verbos portugueses conjugados, sobre o verbo explodir e vários outros de mesma natureza:
Talvez nossa língua aja como a bomba descrita na crônica de Drummond, pouco se importando com a gramática... e se sentindo farta de ser controlada por quem não reconhece aqueles usos já legitimados na própria escrita culta.
A morfologia não tem leis especiais para excluir de sua formação total nenhum dos verbos que se têm por defectivos. Nenhuma lei de estrutura se opõe a que se forme abole, colorem, pule, bane, demulo. Empregá-los numa forma e deixar de empregá-los noutra é coisa que toca ao uso (BARRETO, apud JUCÁ FILHO, 1981, p. 108-109).
Talvez não seja preciso dizer mais nada, não é mesmo?
Para arrematar, deixemos claro que as condenadas conjugações não são, de maneira nenhuma, exclusividade do uso coloquial, mas próprias da língua escrita culta. Em seu Guia de Uso do Português, a linguista Maria Helena de Moura Neves reconhece a existência desses usos condenados "nas lições tradicionais" (NEVES, 2003, p. 329) e fornece exemplos retirados de A História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman ("Mesmo que uma revolução exploda em circunstâncias que não parecem tão complicadas..."), e de uma edição da Folha de S. Paulo ("E o futuro e o país que explodam"). Temos até mesmo o amparo do filólogo português Rodrigo de Sá Nogueira, que diz o seguinte, em seu Dicionário de verbos portugueses conjugados, sobre o verbo explodir e vários outros de mesma natureza:
Considera-se em geral defectivo este[s] verbo[s], dizendo-se que lhe[s] faltam: a 1ª pessoa do singular do presente do indicativo e todas as do presente do subjuntivo. Reputo este critério injustificável e, portanto, insubsistente. Por isso, dou a conjugação completa (NOGUEIRA, 1978, p. 174).
Talvez nossa língua aja como a bomba descrita na crônica de Drummond, pouco se importando com a gramática... e se sentindo farta de ser controlada por quem não reconhece aqueles usos já legitimados na própria escrita culta.
________________________
¹ Reforçando essa afirmativa, Vera Cristina Rodrigues, em Dicionário de Verbos da Língua Portuguesa (2003), reconhece que, embora verbos como eclodir, erodir e implodir sejam considerados tradicionalmente defectivos, "as formas do presente do subjuntivo vêm sendo usadas até mesmo na linguagem escrita" (p. 203).
² Para o leigo, talvez seja difícil compreender e definir o papel dos dicionários, já que, de modo geral, eles exibem tanto uma faceta descritiva quanto outra prescritiva (isto é, normativa). Em alguns verbetes, registram usos condenados pelos gramáticos (e sem indicar qualquer informalidade ou divergência em relação à norma culta); em outros, recomendam evitar este ou aquele uso ou até mesmo condenam determinadas formas. É o caso, por exemplo, da locução "através de" (registrada nessas obras com o sentido de "por meio de") e da conjunção "enquanto" (verbetada com o sentido de "como", "considerado como", "na qualidade de", "sob o aspecto") (HOUAISS, 2009; AURÉLIO, 2009), que têm esses significados condenados pela maioria dos gramáticos. Tal característica merece ser comentada e debatida em outro texto, mas podemos desde já dizer que, em parte, isso deve servir para provar o quanto os dicionários se encontram mais de acordo com vários usos consolidados na linguagem culta do que as gramáticas, mais conservadoras e resistentes às mudanças.
¹ Reforçando essa afirmativa, Vera Cristina Rodrigues, em Dicionário de Verbos da Língua Portuguesa (2003), reconhece que, embora verbos como eclodir, erodir e implodir sejam considerados tradicionalmente defectivos, "as formas do presente do subjuntivo vêm sendo usadas até mesmo na linguagem escrita" (p. 203).
² Para o leigo, talvez seja difícil compreender e definir o papel dos dicionários, já que, de modo geral, eles exibem tanto uma faceta descritiva quanto outra prescritiva (isto é, normativa). Em alguns verbetes, registram usos condenados pelos gramáticos (e sem indicar qualquer informalidade ou divergência em relação à norma culta); em outros, recomendam evitar este ou aquele uso ou até mesmo condenam determinadas formas. É o caso, por exemplo, da locução "através de" (registrada nessas obras com o sentido de "por meio de") e da conjunção "enquanto" (verbetada com o sentido de "como", "considerado como", "na qualidade de", "sob o aspecto") (HOUAISS, 2009; AURÉLIO, 2009), que têm esses significados condenados pela maioria dos gramáticos. Tal característica merece ser comentada e debatida em outro texto, mas podemos desde já dizer que, em parte, isso deve servir para provar o quanto os dicionários se encontram mais de acordo com vários usos consolidados na linguagem culta do que as gramáticas, mais conservadoras e resistentes às mudanças.
Davi,
ResponderExcluirExcelente pesquisa, muito bem condensada. Aceite, porém, uma crítica: os posts do blog são excessivamente esporádicos.
Abs,
Percival
Muito bom o post e com o texto de Drummond como base, ficou melhor ainda... Parabéns!
ResponderExcluirParabéns, amigo, você é fera!
ResponderExcluir